segunda-feira, 25 de março de 2013

XII - Zum de besouro, um imã.



Frase do capítulo:
"Minha mãe sonhou com um navio que tinha o nome Djavan."
Djavan


Não adiantaram as súplicas de Tião. Os guardas o algemaram (para aprender como algemar um maneta, aguarde o lançamento de "Tião: Kama Sutra e Outras Posições Menos Ortodoxas") e o arrastaram sob os olhares sádicos da cúpula do mal, sem sequer permitirem um último telefonema. Desceram com ele por um caminho de pedra, escuro e úmido. No fim do túnel, uma grande galeria subterrânea se abria fria e gotejante. Tião ouviu um barulho de água corrente, forte como um rio. Desesperou-se com a possibilidade de ser  jogado amarrado e indefeso em águas revoltas. Tinha pavor de morrer afogado, ainda mais sem sede como estava. Debateu-se inutilmente enquanto pode, mas para seu azar, não foi despejado como esgoto naquelas águas. O que aguardava Tião era muito pior. Os guardas o colocaram em um barco, bateram em sua cabeça e o deixaram, desacordado, ao sabor da correnteza do Rio das Almas. Ele foi descendo, descendo, bem abaixo do porão do inferno. Muito inferior ao Vale da Micareta Eterna. Mais profundo que a Caverna da Saga Crepúsculo. No subsolo da Coletânea de Imitações do Fernando Angelo. Tião chegou onde poucas pessoas chegaram. Um lugar tão profundo e medonho que é conhecido como o Poço das Almas Suicidas. E, ao contrário do que você esta pensando, caro leitor, não é pra lá que vão as pessoas que se matam na Terra. Essas aí ficam queimando muitos quilômetros acima do tenebroso poço. Verônica, por exemplo, aquela alquimista que decidiu morrer sentada, chorando nas margens do rio Piedra, não passou nem perto de lá. O lugar ganhou esse nome porque nem as almas mais delinquentes e desalmadas conseguem passar ali uma noite sequer. A própria Peçonhenta, que teoricamente administra o lugar, só esteve lá uma única vez, pra escolher o papel de parede. O lugar não vale uma visita.

Tião acordou com o barco já parado, sendo jogando mansamente contra uma pedra grande às margens do rio. Abriu os olhos com dificuldade. A cabeça ainda doía da pancada. Não havia sinal algum de vida, nem morta. Saltou da proa da embarcação e vagou se cagando todo.

Não demorou muito até que encontrasse sinais de que alguém ou alguma coisa tinha passado recentemente por ali. Tião abaixou-se perto de uma caixinha de suco de Toranja, viu que ainda estava fria e tremeu com a possibilidade de contato.

- Quem será que bebeu isso? - questionou-se.
- Não fui eu. - apressou-se em dizer o falante novo personagem - Aliás, trago aqui a Marlúcia que pode confirmar que estou dizendo a verdade.
- Quem é o Sr.? - Perguntou Tião, mais confuso que com medo.
- Jeová. Muito prazer.
- Te mandaram pra cá também?
- Não. Eu gosto de morar aqui. Deixa eu te contar uma história.

Os dois acocoraram onde estavam e Jeová teceu sua ladainha.

- Quando eu tinha perto dos 25 anos, fui passar uma temporada na casa de uma tia que morava na Judéia. Lá, conheci Angélica. Moça hiperbólica, de uma família de comerciantes de figo e tâmaras da região. Não foi, Marlúcia?

- Foi sim, Sr.

- Me encantei com sua beleza. Ela era baixinha, tinha cabelos longos, bem pretos e penteados, meio gordinha, sapeca, cheia de pintinhas. Era impossível não se apaixonar por ela. Não é mesmo, Aderbal? Ta aqui o aderbal que não me deixa mentir.

- Impossível. - testemunhou o Aderbal.

- Me aproximei dela com todo cuidado, sabendo que estava prometida ao filho de um comerciante de pedras. Não queria macular toda aquela pureza, mas tava doido pra comer a danada. Eu até casaria com ela, esse era meu plano. Tinha só que convencer a família dela de que eu era melhor partido que o filho do pedreiro. Um dia me deu coragem e fui falar com os pais. Tomei banho, aparei o bigode, passei minha melhor colônia de cânfora e toquei na casa dela. Não foi, Oswaldo? Confirma aí o que to te dizendo.

- Foi isso mesmo. - Oswaldo não prestava muita atenção, mas deu também seu testemunho.

- Ô de casa. Gritei várias vezes na varanda, mas ninguém respondeu. Gritei de novo e nada. Já estava indo embora quando vi que a porta da entrada estava destrancada. Estranho, né, deixar a porta aberta? Resolvi ver se alguém estava em casa. Fui entrando e não via viv'alma. Vovó vê a uva - pensei, mas não disse.

- Olha, to achando isso tudo muito estranho. Essa lenga-lenga, esse tanto de testemunhas. Você ta inventando esse trem - Tião estava meio sem paciência.

- Deus que me livre de mentir. Vem cá, Juraci, fala pra ele se o que eu to dizendo não é verdade.

- Tudo bem, continua. - Tião mandou prosseguir.

- Onde eu tava mesmo? Ah, na sala. Vasculhei a sala de jantar, a cozinha, o corredor e fui entrando em direção aos quartos. Quando passava em frente ao banheiro, vi que a porta estava quebrada e o chuveiro ligado. A água caía fazendo um barulho monótono, parecendo que ninguém tomava banho.

- Foi assim mesmo. - disse Adamastor, atestando a idoneidade de Jeová.

- Cabra (Jeová arranhava no nordestino), deu medo demais. Abri a porta do banheiro e vi aquela cena horrível. A menina pelada, toda ensangüentada, com uma marca de chupão no seio direito e, pasme, calçando minhas botas de capinar e usando minha gravata.

- Suas botas e sua gravata?

- Pois veja você. Plantaram aquilo ali pra me incriminar. Quem matou Angélica queria claramente fazer parecer que tinha sido eu. Na hora só pensei em me livrar das provas que pudessem apontar pra mim. Tirei logo a gravata do pescoço dela e joguei a bota pela janela. Tagarela, aquarela, churumela.

- Oi?

- Pruff. Mas então, me livrei das provas.

- Foi isso mesmo. - testemunhou, Marina Gulosa de Fátima.

- Depois disso saí correndo, chorando, pelado, com frio e com fome. A polícia logo chegaria e eu não era besta de ficar ali. Fui pra casa e fiquei pensando muito em tudo. Revi cada detalhe na minha cabeça e, só de noite, me caiu a ficha. Onde estavam os pais da menina? É, porque na Judéia mulher virgem não fica sozinha em casa como ela estava. Peguei uma roupa preta e voltei pra porta da casa da minha ex futura esposa. Tocaiei mesmo.

- E descobriu o que? - A essa hora Tião comia pipoca e tomava guaraná.

- Passava um pouco das dez da noite quando parou uma carroça na porta da casa. Estranhei o fato de ninguém ter chamado a polícia ainda. Não sei se aquela era a hora que estavam voltando pra casa ou se não estavam ligando a mínima pra morte da filha. Mas, lá pelas onze e meia, eu ficando sem paciência, me aparece uma outra carroça na porta. Tomei um susto quando vi o Baixo Astral descendo dela, em carne, osso e falta de alegria.

- Gente, durante anos evitei passar em cima das grades de bueiro com medo do Baixo Astral me pegar. Se soubesse que ele morava tão longe eu tinha brincado de Marilyn mais vezes. - Marina Gulosa de Fátima voltou a se manifestar enquanto fazia biquinho.

- Como eu ia dizendo, vi o Baixo Astral saindo da carroça e entrando na casa de Angélica. O mais estranho era que os pais dela vieram abrir a porta pra ele, super felizes. Pareciam que estavam recebendo um amigo. Continuei observando a movimentação pra entender o que acontecia e não demorou muito pra tudo ficar claro na minha cabeça. A menina apareceu na janela, abestado, branca e loira como um fantasma. Ela me pareceu mais alta também. E gritava. Gritava pela casa perguntando queeeem queeer pão? Quem quer pão? Quem quer pão? Logo tudo se acalmou e os pais dela acompanharam o Baixo Astral até a porta.

- Ele ressuscitou a menina num ritual satânico?

- Ressuscitou que eu vi. - atestou, Ana Lúcia de Alcântara Oliveira Beri Beri.

- Calma, lá. Quer dizer que a Angélica, que era morena e baixinha, ficou loira, alta e zureta depois de um ritual macabro comandado pelo Guilherme Karan?

- Quem tá falando? - Tião, Jeová e a rapaziada perguntaram sincronizadamente.

- Eu sou o autor, é que to vendo a história toda daqui de cima e me parece que estamos diante do nascimento de uma figura emblemática e misteriosa daqui da Terra. Isso tudo que acabei de ouvir explica muita coisa.

- Tira a gente daqui! - gritaram todos num uníssono desesperado enquanto olhavam pra cima.

- Não posso. Meu sócio me mata. Mas finjam que não existo e continuem com a prosa.

- Pelamordedeus, a gente não agüenta mais viver morto nesse buraco fundo e escuro. Eu quero minha casa, minha vida! - gritou Maria do Bairro, testemunha ocular, olfativa e vaginal de Jeová.

- Gente, gente, todo mundo quietinho. Passou, passou. Nana neném, que a cuca vem pegar...

Convenientemente caíram todos no sono. Arrumaram um cantinho pra repousar e Morfeu passou o rabo quente nos olhos de cada um.

Horas depois, Tião acorda sobressaltado, enxuga a baba escorrida no canto da boca e, ainda com a mão no peito, olha em volta procurando por mais alguém desperto. Somente Jeová abre os olhos e se levanta.

- Que aconteceu com a gente? Parece que derramaram Rivotril® no nosso capítulo. - Jeová se adianta.

- Cara, não sei, mas tive um sonho muito estranho. Minha mãe - que no sonho era meu pai de fralda - chegava correndo na sala da minha casa - que parecia uma padaria de Kiev - dizendo que eu ia ser preso e levado por um navio.

- Que maluquice.

- E no sonho, minha mãe sonhou com um navio que tinha o nome Djavan, igual àquele que me trouxe até aqui.

Os dois olharam para o navio preso às rochas na margem do rio. Em comic sans, escrito na lateral: Djavan - Faz Frete. Havia um telefone para contato com os números muito apagados. Antes que pudessem pensar numa solução, uma vaca vestida de cisne negro despenca do teto. Estava demorando pro terror começar.


Frase do próximo capítulo: "Quando é que urucum dá?"

O capítulo também deverá conter o nome de um filósofo chinês, um capotamento e um órgão do sistema retículo endotelial.

(Lembrando que todos os capítulos desta última temporada deverão conter a palavra "último". "Última", "últimos","últimas" também valem.  "Ultimamente", "ultimato" e "ultimogênito" estão proibidas.)

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