sábado, 29 de dezembro de 2012

XI – A Serviço Secreto de Sua Tinhosidade


Frase do capítulo:
"O principal problema do nosso tempo é que o futuro não é mais o que costumava ser."
Paul Valéry

– O principal problema do nosso tempo é que o futuro não é mais o que costumava ser.

A voz solene do sujeito de pé ecoou pela sala de reuniões. Ele estava impecavelmente vestido com um terno bem passado, sapatos engraxados, um furo talhado na calça permitindo que abanasse a longa cauda pontuda e os chifres devidamente lustrados e encerados. Pela luz que vinha de um slide de PowerPoint projetado na parede, ele podia vislumbrar as feições das outras pessoas na sala, todas sentadas ao redor de uma mesa pentagonal e prestando bastante atenção. Ele passou para o próximo slide e prosseguiu:

– Há não muito tempo, o futuro era soturno, pessimista, repleto de possíveis guerras nucleares, déspotas genocidas, doenças sem cura.

Um gordo suado, com a pele cheia de perebas, esboçou um sorriso saudosista. A plaqueta à sua frente dizia: "Sir Peste". Ser um cavaleiro, ainda que do apocalipse, é sempre uma distinção importante.

– Hoje em dia, o mundo lá em cima está caminhando para um lugar nojento de tão otimista, com tantos governos respeitando os direitos humanos, assinando acordos de paz, ONGs ajudando os necessitados, gente estudando ecologia. A última guerra mundial aconteceu há quase 70 anos!

Um escandinavo com chifres imensos no capacete de metal balançou a cabeça em sinal de desaprovação.

– Dá pra ir direto ao ponto? – pediu, com certa irritação, uma mulher de traços gregos e o cabelo povoado por dezenas de pequenas serpentes.

– Calma, Dudusa – veio a voz da Diabona, toda purpurinada, sentada na cadeira mais garbosa da sala. As serpentes na cabeça da grega fizeram cara feia, mas a Diaba nem tchum.

– O meu ponto é que nossa companhia precisa fazer alguma coisa para atrair mais gente – continuou o cara do PowerPoint. – E foi por isso que eu convoquei vocês aqui hoje, caros colegas: para que possamos elaborar novas estratégias de cooptação de almas e repassar as diretrizes para nossa agente especial. Ela trabalha conosco há mais de duas décadas e é responsável direta por centenas de milhares de almas que temos aqui.

– E onde tá essa muié? Tô numa larica foda, só comi um prato de grãfanja o dia inteiro. Tira o pé da minha janta, Ilariê.

– Ela deve chegar a qualquer momento, Sir Fome. A nave de Lady Meneg'hell pousou há poucos minutos.

***

– Quem xão voxêix? – perguntou para Tião e companhia a loira parada em frente ao disco voador. Estava irritada por ser incomodada justo agora, que estava atrasada para sua reunião, e ainda mais por criaturas sem um pingo de glamour. Era a primeira vez que isso acontecia: geralmente ela descia no ovniporto da Embaixada Celeste (para evitar os controladores de tráfego aéreo do inferno, que eram todos brasileiros) e saía sem empecilhos. Pelo menos ela trouxera a maleta cor-de-rosa que carregava para eventualidades como essa. Ali dentro havia um pequeno arsenal que incluía água benta, dentes de alho, balas de prata, detefon e um disco de sua amiga Simone.

A Mão, transformada para sempre pela dose de H2O abençoado que acabara de levar na fuça, tomou a dianteira:

– Sou o emissário do Senhor e dou-lhe as boas-vindas, ó ser extraterreno. O Reino de Deus acolhe vossa digníssima presença.
– Nó, pirou – disse Tião.
– Não use o nome de Nossa Senhora em vão – ralhou a Mão. A loira foi abrindo caminho, aborrecida.
– Xaiam da frente, xeush xatush, ixtou atrasada para uma reunião com xente muito importante.

Tião, a Mão e a dragona escamosa ficaram olhando ela sair do imenso jardim e pegar o elevador. A Mão ficou decepcionada por falhar em seu primeiro esforço de catequização enquanto membro anatômico canonizado, mas o Tião estava mais interessado na espaçonave que a loirona deixou pra trás.

– Como é que abre essa joça? – pensou alto, tentando forçar a porta da nave. Ele puxou, empurrou, chutou, xingou, cuspiu e fez carinho, mas todos os esforços foram inúteis. Se quisesse usar aquele veículo para voltar ao mundo dos vivos, precisaria de sua pilota. E talvez... talvez essa "gente importante" com quem ela iria se encontrar soubesse de outros meandros para tirá-lo dali!

Empolgado, ele montou sem pedir licença na cacunda da dragona e ordenou:

– Rápido! Siga aquela loira!

***

Voando com a Mão a bordo da dragona, Tião acompanhava lá de cima o trajeto percorrido pela loira, que ia numa carroça puxada por criancinhas. Estavam novamente em território infernal, para desespero de Tião, mas agora era tarde para perdê-la de vista.

A loira desceu da carroça, enxotou as criancinhas e adentrou um edifício imponente. Tião foi atrás, escondido debaixo da saia da dragona – para todos os efeitos, ela ainda era funcionária da casa e pôde passar pelos trocentos checkpoints do local sem despertar suspeitas. A loira entrou em uma sala no final de um longo corredor, e Tião se apressou em colar a orelha na porta para tentar auscultar o que se passava lá dentro.

– Minha rainha! – a voz era claramente da Diaba.
– Meu anjo caído! – veio a loira. – Que xaudade!
– Fez boa viagem, minha querida? Faz tanto tempo que não nos vemos...

Tião não conseguiu entender mais nada: elas já estavam longe demais da porta.

– Entra lá e escuta o que tão falando – sussurrou ele, olhando para a Mão, enquanto batia na porta e se escondia atrás da dragona. Um diabinho mal-humorado abriu a porta.
– Pois não?
– Eh, hm... Mensagem urgente para Vossa Capetência – improvisou a dragona.

A Tinhosa veio à porta com sua melhor cara de TPM.

– Quê que é agora??
– Desculpe a insolência de incomodá-la, ó Grandessíssima Belzebua, mas é que ainda não conseguimos encontrar o fugitivo.
– Que fugitivo, minha filha?
– O prisioneiro maneta, Senhora das Trevas. Que a senhora me pediu pessoalmente para capturar. Ainda estou trabalhando nisso.
– Tá, tá. Eu tô ocupada aqui, minha filha, só me incomode novamente se achar o bofe ou estiver na hora da minha manicure.
– Mil perdões, Vossa Demonidade.

A Diaba bateu a porta na cara da dragona e voltou para a reunião. Nem reparou que a Mão havia furtivamente se esgueirado para dentro da sala e estava agora quietinha num canto, escondida atrás da maleta cor-de-rosa da loirona.

A loira rebolou até a frente da sala e postou-se ao lado do sujeito de terno, que retomou a palavra:

– Creio que a maior parte de vocês já conhece Lady Meneg'hell, que tem um histórico impressionante de conquistas para nossa corporação. Todos se lembram das hordas de pequenos adoradores que ganhamos com todas aquelas canções; eu mesmo fui tema de um cântico que ficou muito famoso. Milhares de garotas não teriam engravidado tão cedo se não soubessem o que era nheco-nheco, xique-xique e balancê. Milhões de jovens estariam vivendo uma vida correta se não tivessem sido instruídos a liberar geral. E ela fez tudo isso em troca apenas de sucesso, dinheiro e chegar aos cinqüenta anos sem nenhuma celulite. Em nome de todos aqui presentes, eu gostaria de parabenizar Lady Meneg--

Skitsnack – disse o escandinavo do capacete chifrudo, esbanjando o sueco. Ele caminhou até Ilariê e sacou um pergaminho do bolso. – Vocês podem exaltar essa mulher por suas glórias passadas, mas eu tenho aqui dados atualizados sobre sua atuação no mundo dos homens e eles não parecem nada favoráveis. Há mais de quinze anos ela não lança uma música de sucesso com teor satânico!

Um burburinho percorreu a sala, mas Ilariê não se deixou abalar:

– É pra isso que trouxemos ela hoje, meu caro Loki. Para que--
– E NÃO É SÓ ISSO! – interrompeu o escandinavo, apertando o caps lock. – Não só ela parou de contribuir com a causa infernal, como bandeou-se para a frente inimiga!

Ele tirou um gramofone de trás de um biombo e pôs um disco pra trocar. Era a voz inconfundível de Lady Meneg'hell:

– "Tudo que eu quiser / O cara lá de cima vai me dar..."

O burburinho aumentou: a acusação de Loki era grave, e ele tinha provas concretas. A loira gaguejou uma tentativa de se justificar, mas Ilariê, que era mais safo, arranjou correndo um dicionário Houaiss e abriu na letra S:

– "Sima: substantivo masculino. Camada existente abaixo da capa superior da crosta terrestre". O que é que fica abaixo da crosta terrestre? O inferno, seus ignóbeis.
– Papo furado! – levantou-se a grega maluca com as cobras na cabeça. – Eu também investiguei essa mulherzinha aí. Ela nos traiu que nem aquela tal de Mara Maravilha. Sua própria filha já tem 14 anos e até hoje não fez um filme pornô!

A reunião virou um mafuá. Liderados por Loki, quase todos os presentes se exaltaram e começaram a gritar desaforos para Lady Meneg'hell. As serpentes na cabeça da Medusa mostravam-lhe a língua; Sir Peste tossia na cara dela; a Cuca foi pegá-la.

– É melhor você ir embora, minha rainha – disse a Capetona. – A gente conversa depois, longe desses ignorantes.
– Você ixtá xerta, meu anjo caído.

A loira levantou os braços e gritou, calando o vozerio:

– Fui! Vocêix não merecem falar comigo nem com meu anjo – e foi pegar a maleta cor-de-rosa antes de sair.

A Mão gelou: não deu nem tempo de sair de fininho ou fingir que era uma estrela-do-mar.

– Achôô – foi o que conseguiu dizer, sorrindo nervosa.
– Uma mão falante! – exclamou Medusa.
– Adoro mamão! – disse Sir Fome, lambendo os beiços.
– De quem é essa mão? Exijo uma resposta já! – disse a Diabruda, rodando a baiana. A própria mão a respondeu:
– É do Tião, que tá ali fora escutando tudo.

Abriram a porta tão rápido que o Tião não pôde nem se refugiar debaixo da asa da dragona. A Tinhosa olhou pra ele com aquela carinha de te-peguei.

– Seu dedo-duro do cacete – disse Tião para a Mão.
– Desculpa, Tião. É que mentir é pecado.
– Que bonito, hein, Edvanir? – disse a Diaba para a dragona. – Guardas! Levem essa traidora para o Vale da Micareta Eterna.
– Não, nãããão!... – a dragona esperneou mas já era tarde: os guardas espetaram uma injeção em sua jugular e a levaram embora.
– E com você, meu querido, o que faremos? – a Capetona voltou-se para o Tião.
– Eu tenho uma idéia, meu anjo caído – disse a loirona, cochichando no ouvido da Besta Fera.
– Perfeito!

Quando a Diaba anunciou em alto e bom som a sentença que Tião deveria cumprir, até as serpentes da Medusa ficaram com dó. A Mão, atacada pelo remorso, só foi capaz de murmurar:

– Benzadeus...

Frase do próximo capítulo:
"Minha mãe sonhou com um navio que tinha o nome Djavan."
Djavan

O capítulo também deverá conter uma cantiga de ninar, uma porta de banheiro quebrada e uma bota sendo jogada pela janela.

(Lembrando que todos os capítulos desta última temporada deverão conter a palavra "último". "Última", "últimos" e "últimas" também valem. "Ultimamente", "ultimato" e "ultimogênito" estão proibidas.)

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