quinta-feira, 30 de agosto de 2012

X - E todos dançam o pega, estica e puxa



Frase do capítulo: "Cuidado com o disco voador, tira essa escada daí"
Jorge Benjor

- Não!

Tião se recusava a acreditar no que via pela frente. Não sabia descrever se sentia uma forte cólica renal ou uma saudade que chegava ao fim. A mão, picaretada de seu braço há muitos capítulos atrás, jazia no inferno desde então. Porém, o merecimento de estar ali era controverso. Sua breve vida terrena não lhe dera tantas oportunidades de ter sido malcriada e merecer o fogo eterno, nem cabelo ela tinha, mas não parecia incomodada com a injustiça.

- Que diabos você tá fazendo aqui em baixo? - Perguntou Tião com um mamão na cintura.
- Bicho, depois do saco preto na delegacia e da viagem no caminhão de lixo, vim parar nesse buraco. Mas me conta de você. O que tem feito?
- Ish, aconteceu tanta zica nos últimos tempos. Vamos saindo desse palco calorento que te falo tudo. Já conheceu a dona desse lugar? Coisa de doido...
- Tião! Aqui é cheio de traíras. Tão querendo colocar uma aliança em mim, cara. - a mão, que só sabia contar até cinco, agora estava com mania de perseguição.

Os dois saíam do auditório quando ouviram a multidão gritar atrás deles. O cão apresentador incitava a audiência a berrar o nome de Tião enquanto a vinheta no telão anunciava o início de um novo quadro.

- Burn! - gritava a platéia, pegando fogo, literalmente.
- Tião, seu lindo, você não ganhou nada em nosso portão, mas temos uma surpresa que vai te fazer chorar sangue de alegria. Está no ar o Arquivoooo doooos Inferrrnos!

As Diabetes, assistentes de palco com resistência à insulina, dançavam e rebolavam satanicamente enquanto traziam uma bonita poltrona de veludo vermelho para o centro do tablado. Tião tomou o assento, carregou e pôs a mão, muda e boquiaberta, no colo. Prosseguiu Cérbero Malandro.

- Vamos te levar para uma viagem surreal através de depoimentos constrangedores e horripilantes de pessoas ligadas a você. Aquelas coisas todas que você fazia quando não tinha ninguém olhando, aquele vizinho do troca-troca, sua tia crente, tá todo mundo aqui pra nos deliciar. Roda VT!

As luzes do estúdio se apagaram restando somente um foco sobre a cabeça de Tião. A mão continuava paralítica em seu colo, admirando o espetáculo. Depois de um breve infomercial da Hell Pix e outro do Shake das Trevas sabor doce de abóbora, o primeiro depoimento começou. Era Jussara, uma tia da escola, branca, com cara de poucos amigos e muita idade. - O trecho abaixo foi traduzido para um português de professora velha do interior de Minas -.

- Vladmir, que aligria ser chamada aqui pra falar de você. Moço, tá gravando tudo? Você era um menino de ouro, forte, espadaúdo, um pão mesmo. Me lembro de você no alpendre, sentado no tamburete brincando de fazer traque pra explodir a zurrapa da igreja. Do cu riscado. Botava fogo em tudo quanto há.  Moço, filma isso direito que eu quero esse retrato bem bonito. Não me esqueço quando você foi expulso da escola por se recusar a cantar o hino nacional no dia do orgulho ucraniano. Shtché ne vmerla Ukraine i slava, i vôlia... - a velha começou a cantar e o vídeo foi cortado.

- Eu odeio essa mulher. Uma vez esqueci de fazer a tarefa de casa e essa professora me obrigou a escrever 69 vezes no quadro negro: prometo não esquecer de fazer o para-casa. A gente chamava ela de Juceta. - Cochichou Tião para a Mão, que a essa altura dormia de boca aberta.

Tião não estava se divertindo com os depoimentos, mas antes que pudesse se manifestar, soltaram o segundo vídeo.

- Ah, seu Tião era um homem muito correto. Nunca atrasou meu salário. Nem quando fugiu, depois da explosão da usina, ele esquecia de pagar a faxina. Mandava o dinheiro de avião, mas não deixava passar. Falar nisso, seu Tião, semana passada veio uma prima sua atrás do senhor. Pavlova era o nome dela. Mas aí falei que o senhor tava morto e ela só deixou um embrulho e foi embora. Seu amigo Vitiligo também ligou, mas era só pra dizer que seu time caiu pra terceira divisão.

Tião estremeceu com o depoimento da empregada. Precisava mais do que nunca arrumar um jeito de reencarnar. Talvez estivesse dentro daquele embrulho as peças do quebra-cabeça de sua existência. A morte lhe tinha sido tão cruel que havia acabado com sua vida. Levantou-se correndo da poltrona de veludo e abandonou o palco, mas não sem antes pegar o telefone de uma doce Diabete, afinal, era casado mas não estava morto. Ou melhor, estava morto mas ainda tinha ereção.

Correndo para fora do estúdio, Tião foi parado por uma criatura dos infernos, uma dragona de seis metros de altura e um rabo que faria Valeska Popozuda sair de casa vestida. A própria Lúcifer a tinha mandado para garantir que ele voltaria para seu cafofo. A dragona era de poucos amigos e foi logo vociferando.

- Vós sois o fugitivo do reino das trevas. O prisioneiro de Satã, a toda poderosa. Devo levar-te para o encontro com minha rainha, ó criatura fedorenta.

A dragona era devota do Capeta e Tião logo viu seu talento apostólico aflorar.

- Criatura, não temeis. Disse Jesus: Animais usam seus chifres para lutar, mas não o dragão. Reconheceis as divindades de alma elevada e inteligência supimpa. O dragão é o mais sagaz dos animais selváticos e merece os céus. Vinde a meu reino que tornar-te-ei eterna e ma-ra-vi-lho-sa. Amém.

Tião, tal qual um pastor evangélico com CNPJ e contas nas Ilhas Fiji, bradou suas palavras com a mão no peito e o cotoco pra cima. Os olhos apertados davam mais sentimento, como se o fogo de pentecostes o penetrasse por trás. Quando acabou sua homilia, olhou para a dragona e viu com surpresa o impacto da pregação. A enviada das trevas estava comovida. A mão, ímpar, tentava aplaudir sem sucesso.

- Quer dizer que o filho de Deus disse isso sobre mim? - perguntou a Dragona, visivelmente envaidecida. - Pensei que ele me achava feia, tipo um jacarezinho. Meu apelido na academia é Lacoste.
- Disse mais. Falou que tu és divina e graciosa, estátua majestosa.
- Ai meu Deus, eu aceito essa bênção.

(Vocês acabaram de testemunhar a primeira conversão de uma criatura do mal ao cristianismo.)

- Então, dragona, como se chama?
- Edvanir, mas pode me chamar de Irmã. - disse ela cuspindo uma meleca flamejante.
- Irmã, preciso que me ajude a sair desse lugar. Tenho uma certa urgência de reencarnar e resolver umas pendências da minha vida terrena.
- Tudo bem, eu te ajudo, mas com a condição de você me levar junto. Quero ser batizada por Silas Malafaia.

Tião, a criatura e a Mão deram o fora. A dragona acomodou os dois no lombo e voou para longe. Horas depois pousou em frente a um prédio branco, com neblina baixa e gelo seco saindo pela fresta da  porta principal. Quando a nuvem se dissipou um pouco, leu a inscrição na parede: Nagykövetség menny (Embaixada do Céu, em húngaro, que segundo o suspeito Chico Buarque, que nunca morreu nem tem disco gravado de trás pra frente, é a única língua que o diabo respeita).

A mão se apressou e bateu na porta. A alma de Bob Dylan, sentada na calçada em frente, cantarolava "knock-knock-knockin' on heaven's door" pra todo mundo que chamava na porta. (nota do onipresente: a alma do cantor se desintegrou depois da "homenagem de Zé Ramalho).

O portal se abriu graciosamente e todos entraram. Tudo era tão branco e sereno. Os sons de harpa preenchiam o ar com calma e simplicidade. Era como um abraço de uma amiga gordinha. Não mais que de repente, aparece uma funcionária.

- Bom dia cavalheiros, em que posso ajudar?
- Quem é a senhora? - perguntou a mão, se colocando debaixo da saia da mulher.
- Me chamo Aurea, sou secretária da embaixadora.
- A senhora tem que nos ajudar, estamos sendo perseguidos. - disse a mão apavorada.
- Madame, estamos precisando falar com alguém do alto escalão. Pistolão pesado. - acalmou, Tião.
- Bom, a embaixadora está muito ocupada no momento. Estamos trabalhando na extradição de Madre Tereza de Qualcutá. Ela está queimando aqui em baixo há anos. Tudo isso porque, em uma passagem por Nova Deli, comeu um bife de vaca por puro descuido.

A secretária, vendo toda ansiedade da turma, os levou para um café enquanto aguardavam atendimento mais gabaritado. A dragona parava toda hora para flertar com algum anjo, mas perdia o interesse logo que não via pinto. Andaram rapidamente pelo primeiro andar da embaixada e foram deixados pela moça em uma salinha com ar refrigerado e uma máquina de café expresso.

- Não tem açúcar. - reclamou a mão enquanto provava o café e lambia o dedo indicador num claro momento de autofelação.
- Tião, e se essa diplomata não aceitar te ajudar? Já pensou num plano B? - quis saber a sábia dragona.
- Pensei. Aliás tenho quase certeza de que ela não vai topar. Imagina comprar briga com o Demo só pra salvar uma alma desvirtuada como a minha?

A mão continuava se lambendo.

- No caminho pra cá reparei que tem um elevador logo atrás da recepção. Não consegui ler a placa de longe, mas ao lado da porta tinha alguma palavra de três letras, que começava com cê e terminava com ú. - disse Tião enquanto pensava.
- Só pode ser céu, Tião. Esse elevador deve levar direto pra lá. - entusiasmou-se a cuspidora de fogo.

Sem esperar o encontro com a embaixadora, antecipando uma possível rejeição, a turma arrastou-se para a porta e, espiando pelos corredores, correram rumo ao elevador. Foi tudo muito rápido. Sem serem vistos, mas também sem muito tempo de prestar atenção aos detalhes, entraram no elevador e apertaram o único botão do painel.

(A porta se fecha e a câmera desce até a plaquinha sob o interruptor. Bem pequeno, embaixo da sigla CEU, lê-se: Central de Equipamentos Ufológicos)

A viagem não demorou quase nada. Em questão de segundos a porta se abria para um jardim grande, menos claro que as salas da embaixada. Era tudo semi bonito e semi bem arrumado. O chão semi limpo contrastava com nuvens semi carregadas que davam ao lugar um ar de cemitério. Não havia ninguém por perto. Saíram todos do elevador, cada um admirando uma coisa. A dragona ficou enfeitiçada pelas luzinhas que piscavam sem parar no horizonte. Tião, mais preocupado em sumir dali, admirava a imensidão daquele mundão de meu Deus e sonhava em reencarnar em um ator de filmes adultos. A mão, rastejava pelas nuvens tateando tudo, sentindo as gotas de água em suas papilas e se deliciando com cada nova sensação, sempre olhando pra trás pra ver se não tinha ninguém a perseguindo.

- Olha, tem alguma coisa pousando ali. - Tião chamou o grupo.
- Parece uma nave, um disco, uma coisa brilhante, não consigo parar de olhar. - a dragona ficou hipnotizada.

Todos se aproximaram da nave a medida que ela descia. Não tiveram medo, muito menos cuidado. A nave terminou o pouso e ficou ali, rodeada de fumaça, com as luzes piscando.

- Por que essa coisa tem essas vulvas pregadas nela? - a mão quis saber.
- Não são vulvas, são beijos. Parece uma nave de criança - reparou a dragona.

Muitos minutos depois, eles plantados em frente ao disco voador, nada acontecia. Nem a velha fiava mais. A fumaça, que antes encobria de mistérios a nave, tinha se dissipado. Só restava a curiosidade. Tião pensou no pior, lembrando-se de que apesar de estarem em território celestial diplomatico, era o inferno que queimava lá fora. Imaginou que uma nave emperequetada daquelas só poderia ser da Pessonhenta. Não se conteve e foi arrumar um meio de entrar na coisa. Deu uma volta e reapareceu com uma escada de alumínio, para salvação deste autor desesperado.

- Não seria melhor, ao invés de forçar a entrada, a gente bater palma? - sugeriu a mão, lembrando-se de sua incapacidade pra tal ato e tentando, inutilmente, se esbofetear por ideia tão besta.
- Que nada, me ajuda aqui, dragona. Vou tentar entrar por aquela vulva semi aberta ali.
- Entra pela porta. Não faz isso. Cuidado com o disco voador, tira essa escada daí. Vai acabar arranhando essa pintura perolada, esmaltada, com flocos crocantes.

Tião não deu ouvidos. Ajustou a calça que caía e, novamente, como um fidalgo, galgou os degraus com elegância. Bateu na lataria do objeto voador identificado, se certificando de que era firme. Chegou até janelinha e gritou pra dentro:

- Ô de casa?!

Um balde de água benta foi lançada pela janela. Tião abaixou-se antes que fosse atingido no meio das ventas. A mão, que olhava tudo lá de baixo, tomou um banho. Agora, banhada pelo líquido divino, não era uma mão qualquer. Era uma mão santa.


Frase do próximo capítulo:
"O principal problema do nosso tempo é que o futuro não é mais o que costumava ser."
Paul Valéry

O capítulo também deverá conter as palavras grãfanja, celulite e benzadeus.

(Lembrando que todos os capítulos desta última temporada deverão conter a palavra "último". "última", "últimos" e "últimas" também valem. "Ultimamente", "ultimato" e "ultimogênito" estão proibidas.)

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