domingo, 6 de maio de 2012

IX – Oradukapeta


Frase do capítulo:
"Debaixo do cacho tô querendo bis"
Paula Fernandes

Tião olhou prum lado, olhou pro outro. Pra Guanhães ele não ia nem a porrete, ficava perigosamente perto de Sabinópolis e aí era mais jogo continuar no Inferno. Seguir Madame Satã em sua peleja contra Elvis Presley era furada na certa. A melhor opção parecia mesmo ir pra direita seguindo o sentido da vida e dar um jeito de reencarnar.

Mas como dar um migué na Senhora das Trevas em pessoa? Tudo o que ele pensava que sabia sobre o Diabo tinha ido pro brejo quando dera de cara com essa Diabete tagarela que não largava do seu pé. Como desviar a atenção de um ser onipresente, onisciente e oninconveniente? Ele começou a revisar mentalmente todos aqueles anos de conhecimento capetístico. O Diabo tem um advogado. O Diabo é o pai do rock (será que vinha daí o desafeto com o rei do rock?). O Diabo veste... Epa! Isso pode ser útil.

A Excomungada continuava papeando:

– Aí consultei meu numerólogo e ele sugeriu que eu mudasse meu nome para Lucy Fèrr. Mas descobri que--
– Eh... dona Tiçã? – interrompeu Tião, apontando o cotoco para o outro lado da rua. – Eu não sabia que no Inferno tinha superliquidação da Prada, tudo com 66,6% de desconto!
– Ai, meu São Teló! Onde? Cadê?

Foi a Tinhosa virar o olho e o Tião saiu saindo, entrando no primeiro beco que apareceu e correndo ensandecido sem olhar pra trás. Depois de ter o cooper feito, seu fôlego de defunto cedeu e ele bisoiou a retaguarda. Nem sinal da Chavelhuda.

​A paisagem havia mudado um bocado. Quanto mais longe da sede do governo, por assim dizer, mais o Inferno perdia a atmosfera purpurinada e ficava amedrontador e intimidante. Lojas de luxo e cabeleireiros davam lugar a boates de sertanejo universitário, repartições públicas e agências de publicidade. A temperatura subira consideravelmente – Tião suava como se estivesse em Mascate no verão tomando tabasco no gargalo e vestindo casaco de pele de Yeti. E a cada esquina, um alto-falante com a voz do Dinho Ouro Preto repetia: "E aí moçada, do caralho!".

​Tião tentava seguir a sinalização, mas a coisa ficava cada vez mais confusa, parecendo um fluxograma de empresa feito pelo sobrinho do dono, com setas malucas apontando para direções contraditórias. Foi só quando notou letrinhas miúdas no canto de uma das placas ("Uma parceria BHTrans-Galba Veloso") que Tião parou de seguir as setas e resolveu pedir informação.

– Ei, amigão! – gritou para um gordão de bigodinho de cafajeste. O cara nem tchum: continuou olhando pra cima, totalmente alheio a estímulos externos. Tião olhou também. No topo de um poste altíssimo havia um dispositivo esquisito que parecia emitir uma lufada de vapor em quem estava lá embaixo.

O gordo inalava profundamente aquela baforada e fazia uma cara de regozijo. Tião se aproximou.

– Tô querendo saber como é que faço pra voltar à vid--
– Ora bolas, não me amole!

Tião reconheceu o sujeito: era seu xará Sebastião Rodrigues Maia.

– Tim? O que cê tá fazendo no Inferno, rapaz?
– Me dê motivo pra ir embora – respondeu o Maia.

​O vapor atingiu as fossas nasais de Tião e ele sentiu o odor que emanava dali. Só que não era uma fedentina horrenda como se esperaria do Inferno, mas um agradabilíssimo aroma de chocolate. ​Começou a se lembrar com nostalgia dos bombons de cupuaçu que saboreara no Acre, dos Kinder Ovos com surpresa radioativa com os quais topara em Pripiyat, e começou a ansiar por chocolate, como eu quero chocolate, me dá um chocolate pelamordedeus!

Então notou uma placa pregada no poste onde estava o dispositivo e despertou do transe. Estava escrito: "Capacitor Automatizado de Controle e Hipnotização de Olfato".

– Tim Maia, meu amigo. Acorda dessa maluquice! O que cê tá fazendo?
– Debaixo do C.A.C.H.O? Tô querendo Bis! Ou Sonho de Valsa, Mundy, Alô Doçura, qualquer porra. Eu só quero chocolate!
– Tsss – sibilou Tião, desesperançoso. – ​Beleza, só me conta um negócio. Como é que faz pra sair daqui? Onde fica a saída de emergência, a porta dos fundos, o sentido da vida?

​Tim deixou de aspirar o vapor de cacau pela primeira vez, encarou as pupilas de Tião e disse, com pompa:

– Vou informar o que eu já sei, em benefício pra tudo e pra todos. Não se aborreça, não esquente a cabeça.  Manuel, o maior homem do mundo, semeou conhecimento. Mas agora todos vão se encontrar, todos vão se imunizar. Repinique e xique-xique, tanta coisa com repique. Nova era está por aí, venha aquariar.

Tião saiu dali correndo.

Continuou se esgueirando pelos inferninhos do Inferno e pedindo informação pra Deus e o mundo, no sentido figurado, claro. As várias instruções desencontradas foram aos poucos fazendo sentido. Uns ouviram falar de que pra chegar aos Portões do Inferno era só seguir em frente. Outros alertavam sobre uma criatura bisonha que tomava conta desses portões.

​Tião seguiu todas as recomendações, mas ficou encucado ao chegar no local aonde fora levado. Era um grande galpão fechado, com apenas uma porta e uma plaquinha luminosa que dizia: "No ar".

​Ele abriu a porta pesadona e subitamente se viu no breu total. Não havia mort'alma à vista, não se sentia mais aquele bafo tropicaliente tapando-lhe os poros, nenhum barulhinho ou ruído perturbava o ar.

​Uma voz de barítono rouco rompeu o silêncio, vinda de todos os lados ao mesmo tempo:

​– QUE HORAS SÃO? (ão... ão... ão...)
– ... – calou–se Tião.
– Eu perguntei... QUE HORAS SÃO? (ão... ão...) – repetiu o infernal surround sound.

​De repente PAF, PAF, PAF, trocentos holofotes se acenderam ao mesmo tempo, cegando Tião num show de luzes pra Calypso nenhum botar defeito. E logo em seguida veio um coro de um gazilhão de vozinhas agudas berrando a plenos esôfagos:

​– É ORADUKAPETAAAAAAAAAAAAAAAAA!!!!!!

​Os olhos de Tião se acostumaram à claridade-monstro e ele começou a distinguir as cousas. Estava no centro de uma arena, cercado por um mundaréu de criancinhas que não paravam de urrar. Os fedelhos ocupavam assentos organizados em formato meia-lua, e na outra parte do círculo ​havia três enormes e imponentes portões de ferro. Câmeras, contra-regras e anões vestidos de Mara Maravilha completavam o cenário.

​Tião percebeu alguém saindo de trás dos portões, caminhando a passos gingados. Não era gente, mas uma criatura indefinida, preta, claudiaohanicamente peluda. Um cachorro! Mas um cão com algo a mais: em vez de uma, havia três cabeças. E sobre cada cabeça, um bonezinho colorido com a aba virada para o lado.

​Tião tremeu nas bases enquanto o Cão Diabólico o encarava fixamente. Uma das cabeças mexia o focinho, outra o examinava de cima a baixo e a terceira lambia o próprio saco. No auditório, os capetas em forma de guris estavam calados, mesmerizados pela situação tensa.​​

​O canzarrão abriu a bocarra da primeira cabeçorra, e as outras duas fizeram o mesmo. ​Mas em vez de latidos, ganidos, grasnados ou grugulejos, os sons que saíram foram bem diferentes:

​– Ráááááá!!
– Glu gluuuuu!!!
– Iéiééééé!!!!

​E as criancinhas irromperam em urros novamente, berrando "Cérbero! Cérbero! Cérbero!"

​– Doncovim? Oncotô? Quenqcêé? – balbuciou Tião. E a primeira cabeça respondeu:
– Meu nome é Cérbero Mallandro, e você está no Portão dos Desesperados!
– Ráááá!! – concordou a segunda.
​– Iéiéééééé!!! – completou a terceira.

Tião continuava apoplético.

– Você só precisa escolher um portão – explicou Cérbero. – Se escolher o portão certo, volta à vida instantaneamente, nasce em berço de ouro, profissão herdeiro, vai curtir a vida boa por uns bons 80 ou 90 anos antes de voltar pra cá! – E se eu escolher o portão errado eu me fodo, certo? – perguntou Tião.

E a massa de fedelhos ensandecidos:

– CEEERTOOOOOOOO!

​​Ele pôs-se a matutar. Os três portões pareciam iguais, diferenciados apenas por terem estampados os números 1, 2 e 3 em fonte Comic Sans. A coisa ia ter que ser no chute mesmo. Ele até sabia de uma macumba pra ganhar na loteria, que poderia ser de alguma ajuda. Mas ia precisar de um bode, quatro garrafas de pinga, doze sementes de umbu e uma bonequinha vodu da pessoa amada – peraí, essa macumba era pra outra coisa! Tião estava confuso e pressionado a tomar uma decisão logo.

– Eu escolho o portão número 1.
– Tem certeza? Pode abrir? – disse uma das cabeças caninas.
– Pode.
– Não quer trocar?
– Não.
– Tem certeza?
– Tenho, porra.
– Então grita!
– Quê?
– Grita!
​– Aaah.
– Grita mais alto!
– AAAH!
– Grita que nem homem!
– WWWWAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHH!!!!
– Agora sai nadando!

​Tião se atirou no chão e pôs-se a rastejar com braçadas de crawl.

​– Agora dança balé!

Tião flexionou os joelhos num demi-plié, saltou pra trás num sissone en arrière e terminou com um degagé.​

​– Agora faz uma punção lombar!

​Tião deitou-se de lado, lascou uma agulha entre as vértebras e colheu gotas de fluido cerebroespinal.

​– Quer trocar de portão?
– Não... – disse Tião, ofegante.
– QUER TROCAR DE PORTÃO? – repetiu o cão, agora babando.
– Ai, cacilda, tá bom. Quero o número 3.
– É pra abrir?
– É.
– Pode abrir mesmo?
– Pode, caramba.

​​O cão avançou para perto do último portão, levantou a pata e alcançou a maçaneta. Fez que ia abrir e recuou.

​– Primeiro vamos ver o que você perdeu!

Abriu a porta número 1 e uma brisa salgada invadiu o auditório. Por trás da porta via-se uma praia paradisíaca, de areia branquinha, um sol na temperatura certa, um casal feliz e sarado passeando com três empregadas e um carrinho de bebê, e dentro do carrinho um neném fofinho e rechonchudo, bem alimentado e rindo à toa, com a cara do Tião.

​– Perdeu, preibói – disse o cão, fechando a porta. – Agora vamos ver o que você ganhou!

​​​Cérbero Mallandro voltou à porta 3, puxou a maçaneta devagar e abriu o portão. Mas não havia bulhufas: só uma parede branca, que não dava em lugar nenhum. "Carái de asa", pensou Tião. Tanta volta pra nada. Restava-lhe agora sair dali, perdir perdão pra Diaba e rezar pra que a eternidade no Inferno passasse rápido.

​Mas subitamente ele ouviu uma voz familiar:

​– Wazzzzaaaaaaaaaa, motherfucker?!!

​Tião olhou pra baixo e viu, olhando pra ele com cara de velhos amigos, a mão esquerda que​ perdera há tanto tempo.

​Frase do próximo capítulo:
"Cuidado com o disco voador, tira essa escada daí"
Jorge Benjor

O capítulo também deverá conter as palavras jacarezinho, avião e zurrapa.

(Lembrando que todos os capítulos desta última temporada deverão conter a palavra “último”. “Última”, “últimos” e “últimas” também valem. “Ultimamente”, “ultimato” e “ultimogênito” estão proibidas.)

Castigo extra: como se esqueceu de incluir a palavra "último" no capítulo VIII, De Pinho também deverá inserir no próximo capítulo a frase "Prometo não esquecer de fazer o para-casa".

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