segunda-feira, 17 de outubro de 2011

VIII - The Devil is Mara





Frase do capítulo:
"Quero apanhar na rua."
Bruno Gagliasso
Inferno, 50 anos luz antes do Hypogloss
Tião acordou desorientado, sem saber onde estava. Abriu os olhos com dificuldade, espiou em volta, ergueu-se lentamente do chão quentinho e enfumaçado enquando ajeitava a roupa e tateava o rosto procurando pela máscara do Jiraya. Bem na sua frente uma enorme porta dourada deixava o lugar com ares de paraíso. Ao lado dela uma placa onde se lia: Entrada Franca. Tião aproximou-se do portal que se abriu automaticamente. Ao passar pelo vão, uma voz suave e direta deu as boas vindas:
- Seja bem vindo! Tá gordo, hein?! - disse a porta com toda sua franqueza.

Tião entrou ressabiado. O ar cheirava a penteadeira de meretriz e comida requentada, parecia a casa de uma tia minha. Cambaleando feito um recém morrido, deu alguns passos tomando cuidado onde pisava. O quinto dos infernos não se parecia com nada que havia imaginado. Não era vermelho e flamejante como nos sonhos em que ele e Natasha transavam numa jacuzzi de lava escaldante. Era rosa. Não era feio e escuro como o Maizena, seu amigo negão da pelada. Era claro e bem decorado. Quando andou um pouco mais longe explorando o lugar, uma nuvem densa de fumaça branca formou-se diante dele. Tião tossiu, esfregou os olhos e ajudou a dissipar a nuvem balançando o cotoco. Foi quando viu, por entre a névoa, uma criatura ficar nítida e ganhar forma.
- Tião Butterfly Caparaó Moskovsk! - disse a coisa enquanto riscava o nome na papeleta.
- Onde eu tô? - perguntou confuso e assustado.
- Isso aqui ô, ô, é um pouquinho de Brasil iá, iá. - A coisa cantarolou e riu com ironia, deu-lhe um crachá onde se lia: 愚蠢, e mandou que a seguisse.
Andaram longamente por anos - ali o tempo passava diferente - e a cada passo Tião matava um pernilongo, que morria dizendo: vou estar morrendo, senhor. Já estava de saco cheio da falta de conversa, mas era inútil a tentativa de puxar papo com a coisa que o guiava. Andando rápido e assoviando um poema musicado de Caetano, ela seguia sempre na frente, anotando e passando as páginas do bloco. Vez ou outra virava-se para trás e fazia menção de que ia falar alguma coisa, mas só resmungava e voltava pro seu caderninho. Após a longa e muda jornada, chegaram, finalmente, a uma imensa sala iluminada, onde o eco dos passos parecia ser engolido pelo ar. Tião achou estranho os barulhos que lugar emitia e aproximou-se de uma das paredes para escutar melhor.
- Vai se acostumando com a música - disse a coisa sem tirar os olhos das linhas em branco.
- De onde vem essa gemeção?
- Vem do lugar pra onde você tá indo. Quer comer alguma coisa?
Tião fez que sim com a cabeça e logo estava comendo o croissant que o diabo amassou. Foi encaminhado para uma longa fila de espera cheia de pessoas como ele: feias e sem esperança. Sentiu-se, por um segundo, aguardando atendimento urológico num hospital imundo do SUS. De tempos em tempos uma porta se abria e uma senhora recatada, dessas que não se encontra mais (tenho a impressão de que já escrevi isso), chamava um nome. A pessoa se dirigia à porta e de lá não voltava.
Atrás de Tião estava uma criança toda serelepe.
- Tio, escuta essa! Como é que um índio matemático cumprimenta o outro?
- Não sei. - respondeu, Tião.
- 8 π. - A criança caiu na gargalhada e tremeu a perninha que sobrou do acidente.
(Nota de esclarecimento: Desde que o papa Bento XVI acabou com o Limbo, as crianças mortas, sem batismo, vão todas pro inferno.)
A senhora da porta dos desesperados gritou o nome de Tião e ele levantou prontamente. A hora com o Beuzebú é quase sempre marcada sem aviso, mas ainda assim ele não admite atrasos. Tião entrou mineiramente desconfiado, andou devagar pra não fazer barulho, até porque ninguém quer incomodar o capeta. Luzes neon brilharam numa enorme passarela, uma cortina de fogo se abriu e o tinhoso materializou.
- Uma mulher? - exclamou depois de ver o Coisa Ruim.
- Cuidado com o que vai dizer. Eu sou divina. - disse a satânica criatura com problemas de gênero e aceitação pessoal.
- Vossa capetência me desculpe, mas é que eu fazia outra imagem da sua pessoa.
- Tudo culpa daquela Igreja brega e outdated! Fizeram minha caveira depois da cirurgia. Eu não aguentava mais aquelas nuvens brancas, aqueles panos de algodão orgânico sem caimento, sem glamour. Eu era uma anja fina e mal comida.
- Desculpe o atrevimento, mas sempre ouvi que anjo não tinha sexo.
- Humano, isso é coisa que inventaram pra agradar fiel. Imagine se pega bem uma criancinha rezando pra um anjo da guarda que anda pelado balançando uma harpa de 23 cm. Não pega. Aí a gente tinha que ficar amarrando a coisa pra trás com fita crepe na hora de posar pro Michelangelo. Como por dentro eu sempre fui uma mocinha, aproveitei a deixa e cortei fora.
- Foi aí que você caiu dos céus?
- Mais ou menos. Antes de operar, eu e David, meu primo alto e forte, tinhamos um caso. Coisa antiga, mas só rolava uma meiose. Quando finalmente virei menina e pude me entregar pra ele, papai abriu a nuvem bem no momento em que eu levava uma ligeira desvantagem. Foi um Deus nos acuda. Parecia que eu tava dando uma coisa que era dele. Resumindo: Deus não acudiu e fui mandada pra cá. Mas não precisa me olhar com essa cara não. Agora isso aqui tá ótimo. Na época que eu vim era pedra e fogo. Um ó. Eu que dei um up nesse muquifo.
- Mas me conta uma coisa - Tião se interessou pela história - Esse David, seu primo, é aquele da estátua de Florença?
- O próprio! - A capeta se abanou enquanto respondia - Michey (como Michelangelo era conhecido nas mocadas boêmias) secaneou o coitado com aquele penduricalho ridículo. O bofe dele, Tommaso dei Cavalieri, fugiu com meu primo bem enquanto terminava a estátua. Deixou ele possessed, e com razão.
Tião ficou embasbacado com a história. Seus anos de catequese na paróquia Nossa Senhora da Pastilha Radioativa, em Kiev, o fizeram acreditar que o Capeta era uma criatura das trevas, má e sem coração. Nos dias de malcriadez (essa palavra existe e eu olhei no dicionário) sua avó costumava dizer: “Se não parar com isso o Capeta vem passar o rabo quente na sua boca”, ou ainda “Vai tomar no cu, menino”. O fato é que aquele travesti de rosa choque que abria sua vida eterna bem diante dele era quase uma antítese de tudo que imaginava.
O papo corria relativamente bem e Tião se sentia confortável no inferno, mas pensar que estava morto dava um certo nervosismo. Sem perceber, não parava a bunda quieta na poltrona de pelúcia, escorregava feito um sabonete de sauna gay. A Tinhosa, vendo aquela mexeção toda, abriu espaço pro diálogo terapêutico.
- O que te incomoda, humano?
- É que é minha primeira vez, sabe? Sou novo nesse negócio de morrer de verdade. Quando me enterraram vivo pra eu ganhar asas, senti que não era a morte, mas sim uma chance de recomeçar e dar valor às coisas que realmente importam. (Antônio Roberto, 2001).
- Meu caro, tudo na morte tem motivo. Nossa administração desceu com você pra pedir ajuda. Estamos travando uma batalha inglória contra um inimigo muito carismático.
- Quem?
- O nome dele é Elvis.
- O Presley? Mas rola na boca miúda, lá em cima, que ele não morreu.
- Morreu sim e quem matou fui eu. Chamei o cara pra fazer presença VIP na festa de inauguração do meu lounge. O problema é que a medida que os contemporâneos dele foram chegando, endeusaram o sujeito, coisa que não é permitida pela minha administração.
- Não tô entendendo onde entro nesse papo.
Tião estava cansado de ser recrutado pra resolver pepinos dos outros. Só perdia em aliciamentos pra Robert Langdon, que resolvia todos os problemas que Dan Brown criava.
- Vou te explicar. Vamos dar uma volta lá fora e te digo o que fazer. Apanhe algo pra beber no caminho. - A Tinhosa abriu a porta enquanto falava.
- Quero apanhar na rua. Passamos num butequinho qualquer e pego qualquer coisa.
Enquanto andavam, Tião observava o inferno com atenção. Tudo se parecia muito com a Terra. Havia uma aparente organização social, as pessoas - pegando fogo - desenvolviam atividades produtivas, compravam, dormiam e faziam suas necessidades como se estivessem vivas. Haviam ruas e avenidas bem sinalizadas por onde os mortos pecadores andavam. Numa delas, uma placa atraiu o olhar de Tião.



Era a informação que precisava pra sair dali.
Frase do próximo capítulo:
"Debaixo do cacho tô querendo bis"
Paula Fernandes

O capítulo também deverá conter o nome de uma cidade de Omã, um parágrafo enigmático e uma macumba pra trazer a pessoa amada.

(Lembrando que todos os capítulos desta última temporada deverão conter a palavra “último”. “Última”, “últimos” e “últimas” também valem. “Ultimamente”, “ultimato” e “ultimogênito” estão proibidas.)

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