segunda-feira, 4 de abril de 2011

VII – Visão além do alcance









Frase do capítulo:
“Embora ocupasse um cargo importante da hierarquia católica, tinha um apelido engraçado, Padre Perereca.”
Laurentino Gomes, no livro 1808.



- E então, gente. O quê que vocês acham? - perguntou Lígia, franzindo os supercílios.
Havia uma tensão danada no ar. Um clima de desconfiança, uma sombra negra eclipsando o sol. A fotogênica moçoila na ponta da mesa redonda, Clarissa Franciscana do Céu, verbalizou o sentimento geral: - Eu acho que a gente devia matar ele. Matar ele. Estavam todos olhando para o pai de Tião. Ele ouviu a ameaça sem desviar o olhar, sem ao menos suar frio ou borrar as calças em segredo. Estava apenas visivelmente decepcionado.

- Vocês estão cometendo um ggande êggo.
- Quem é Diego?
- Eu tô aqui pga ajudar vocês, cagamba. Jugo que não sou quem vocês tão pensando. Eu sou do povo, eu sou um zé-ninguém!
- Eu proponho uma votação – disse Clarissa Franciscana – Quem quer matar ele levanta a mão.
- Por mim, morre – topou Marinalva.
- Já pra forca – consentiu Ariranha.
- Pau nele – compactuou Lactobacil. 
Não houve sequer um voto contra: um a um, todos os jovens carrascos concordaram que mandar o velho para os braços ossudos da Morte era o caminho mais sensato.

- Você morreu – sentenciou Dadinho.
O pai de Tião balançou a cabeça e tirou um papelzinho dobrado do bolso. Abriu, jogou na mesa e finalmente extravasou sua cólera:

- Seus buggos! Cês matagam o Beiga-Mar! Deixagam a ABIN ganhar!
- Yeah!! - gritaram Clarissa Franciscana, Marinalva e Dadinho, os membros da equipe vencedora. Toda partida terminava assim: as cabeças maquiavélicas da ABIN ludibriavam toda a população do Morro, convenciam que o Beira-Mar era o vilão da história e garantiam a própria vitória.
Tinha sido essa a idéia de Lígia: aliviar toda aquela tensão que pairava no Rancho do ZÁZ – com o seqüestro da galera no mato, o doidão com a máscara de Jiraya, a invasão da polícia e o gambá encontrado na caixa d'água em estado de putrefação – jogando o jogo preferido da galera. “ABIN” era uma versão brasileira Herbert Richers do popular “Detetive”, com a diferença de que os assassinatos eram mais democráticos e decididos em conjunto.
- Vamos jogar de novo? - perguntou Lígia, pronunciando sua segunda frase num mesmo capítulo. Um recorde!
- Eu num gosto de jogo. - disse ZÁZ.
- Alguém aí quer dar um mergulho? - perguntou Laís Abel, fascinada com o mundaréu de água ao seu redor.
- Só se for a-go-ra! - disse Clarissa Franciscana. Ela imediatamente jogou a roupa no chão e saiu correndo em direção à lagoa, batendo palminhas e equilibrando no nariz um limão-capeta tirado do pé. A turma pintou a cara com o carvão do churrasquinho que queimava ali do lado e seguiu a Mother Foca, entrando na lagoa aos pulos, como mineiro no mar de Guarapari, ao mesmo tempo em que todos abriam os braços e berravam para os céus um clássico dos Originais do Samba:
- Vai ter bacubufo... olha o bacubufo no caterefofo!
Dadinho e Paulo Saci foram os únicos da turma que dispensaram a histeria coletiva e ficaram ali no quiosque do Rancho, tomando um caipi-absinto e beliscando uns conosquinhos na companhia do pai do Tião.
- Eu queguia aggadecer vocês pela camagadagem. Pagticipar desse jogo deu uma acalmada no estguesse. E queguia me desculpar mais uma vez pelo compogtamento do Tião.
- Sem galho – disse Paulo. - A gente sabe que um filho psicopata nunca é culpa dos pais.
- É – disse Dadinho, colocando mais absinto no copo do velho. - Bebe mais um pouquinho aí, não se avexe.


- Será que a dromedária também quer um golinho? - perguntou Paulo. Ela estava esparramada na piscina em formato de feijão do outro lado do quintal, pegando um bronzeado, no melhor estilo camelo do Refresco Axé.
- Natasha! - berrou o pai de Tião. - Nossos anfitguiões tão ofeguecendo uma bebida!
A tilópoda se levantou com má vontade e veio até o quiosque, rebolando a corcova.

- Dá uma breja aí – pediu.
- A gente só tem absinto – disse Dadinho, levantando a garrafa verde.
- Serve – disse Natasha. Como sua pata ungulada artiodáctila era ruim pra segurar copo e a bocarra era desengoçada demais pra beber de canudinho, acharam mais prudente servir-lhe a bebida num baldão de vinte litros.
***
Quarenta minutos depois, o clima era de festa. A risaiada tomava conta, Natasha contava casos pornográficos e o pai do Tião estava tão bêbado que sua língua tinha dois nós de marinheiro e um de gravata.

- Aí eu falei: papai-e-mamãe não dá, Tião, porque machuca a minha bola! HAHAHAHA!! - Natasha sempre ficava histérica quando lembrava de suas peripécias.
- Estga guistóguia é gótigma – disse o pai de Tião.
Paulo olhou para a Dadinho e os dois concordaram que estava na hora. Paulo tirou do bolso o poema ditado por Tião no esconderijo, que ele havia impresso.

- Aproveitando a descontração, conta aí um caso sobre a prima Pavlova.
- Pguima Pavlova? - de repente o pai de Tião ficou sério.
- É, essa prima pra onde o Jirayão queria mandar a gente. Tá aqui no poema. Quem é a guria?
- Ele nunca me contou sobre prima Pavlova nenhuma – disse Natasha, enciumada.
- E pro senhor? - questionaram o velho.
- Vocês sabem, eu conheci o menino já cguescido, sou meio distante da família...
- Mas ele nunca mencionou nenhuma Pavlova?
Natasha e o sogro se entreolharam. Talvez fosse o absinto. Talvez fosse o fato de estarem afastados da presença ameaçadora de Tião. Mas agora, os dois sentiam que podiam confiar em Paulo e Dadinho e contar o pedaço que sabiam.

- Bom, ega uma vez uma fazenda no Acgue...
Segundo o relato, as caraminholas na cabeça de Tião começaram meses atrás, no dia em que ele abriu uma misteriosa arca iluminada na Fazenda Pegapacapá e foi presenteado com a máscara de Jiraya e a motosserra Stihl. Ele meio que endoidou depois disso. Não falava coisa com coisa, não comia direito, não bolinava mais Natasha na frente das visitas. Fica só repetindo: “Prima Pavlova tava certa. Ela tava certa”. Às vezes ele ficava num looping hipnótico, olhando para o infinito e dizendo: “Dadinho Pinel, Paulo Saci. Dadinho Pinel, Paulo Saci”. O pai e a esposa já não sabiam mais o que fazer. Quando perguntavam a Tião o que é que ele queria, quem eram essas pessoas e por que ele não tirava mais aquela máscara vermelha ridícula, ele respondia apenas que teve uma visão do futuro e sua missão era fazê-la acontecer. E que a prima Pavlova estava certa, fosse ela quem fosse.

- Foi por isso que ele pegseguiu vocês. Ele tava de olho há meses, espegando a melhor opogtunidade pga captugá-los. A gente só não sabe pogquê.
Paulo teve um estalo e deu a última golada em seu caipi-absinto.

- Dadinho, pega a chave do carro.

***
Tião bocejou pela terceira vez na frente do padre. Era uma figura curiosa. Embora ocupasse um cargo importante da hierarquia católica, tinha um apelido engraçado, Padre Perereca. Talvez a alcunha viesse de seu nome de batismo, Vagino Clitório Vulvênio Xoxó, mas não havia certeza. Sua função na cadeia de Sapeca-Iaiá era arrancar confissões onde até a massagem relaxante do Tonhão havia falhado. O presbítero coçou o bigodinho de Hitler e abriu os grandes lábios para falar mais uma vez, com bafo de bacalhau:

- Vamos, meu filho. Confessa que matou a empregada, eu te dou a extrema unção e posso ir embora ver minha novela.
- Eu já expliquei um mol de vezes, seu padre. Pode me acusar de seqüestro, intimidação, zoofilia, roubo de jabuticaba e dedo no nariz, mas eu não matei empregada nenhuma.
- Vamos tentar de novo. Confessa que mat... – uma batida na porta interrompeu a fala de Perereca.
- Pode economizar saliva, padre. Pagaram a fiança do rapaz – era o Cabo Úéssebê, com um ar meio desconectado.
Tião foi despejado pra fora da delegacia e viu que já era noite. Acostumou os olhos à penumbra das ruas do vilarejo e reconheceu os responsáveis por sua libertação.

- Primeiro me jogam pros tubarões, depois me pescam de volta? - disse ele para Paulo e Dadinho.
- A gente ainda não terminou aquele papo – disse Paulo.
- É – disse Dadinho – E nós gastamos todas as nossas economias, mais o megafone do Manquino, o kit-escoteiro da Lactobacil, os apetrechos sadomasoquistas do ZÁZ e meu álbum de figurinhas da Marisa Monte pra tirar você do xilindró e ouvir o resto da história.
- E trouxemos um agrado – completou Paulo, devolvendo a Tião sua máscara de Jiraya. Ele abanou as asas de borboleta em agradecimento. Sem o disfarce, sentia-se nu.
Os três encontraram um boteco ao lado de um trator enferrujado da John Deere. Preferiam conversar em Sapeca-Iaiá antes de voltar ao rancho, pra evitar inconvenientes como uma dromedária toda bêbada e queirosa afim de brincar com o tiãozinho. Precisavam de concentração. Precisavam de respostas. Como aquela que não queria calar: quem era a prima Pavlova?

“Pavlova Aleksandrina Shureta Moskovska”, disse Tião, “minha prima predileta. Crescemos juntos em Pripyat, brincando de otorrinolaringoginecoproctologista, tomando vodka com Ninho Soleil. Depois a vida tem dessas coisas, né. Cada um seguiu seu rumo, Pavinha casou, pariu, engordou, sabe cumé. Mas a gente se encontrava sempre que dava e ela adorava ouvir minhas histórias de Chernobyl. Sexo, drogas e radioatividade, prato cheio pra conversa de bar. Pavlova sempre dizia que minha vida daria um livro, mas eu só achava graça e ignorava. Vocês sabem, escrever é coisa de desocupado.”
“Mas de tanto ela me aporrinhar com essa história, prometi que um dia lançaria uma biografia. E que ela seria consultada no processo, afinal, lembrava mais da minha vida do que eu. E fui vivendo, sem lembrar da tal promessa. Ucrânia, Minas Gerais, Acre, Ucrânia, Acre, Minas Gerais... aquela vidinha. Até que um dia...”

Close no rosto de Tião em câmera lenta, música de suspense. 
“Um dia, encontrei uma arca. E quando abri essa arca, recebi uma máscara, uma motosserra e tive uma visão. Foi um transe que durou poucos minutos, mas que mudou a minha vida. Agora eu tinha um propósito a seguir.”

- Ih, baixou o Paulo Coelho – comentou Dadinho.
- O que foi a visão? A resposta para a vida, o universo e tudo mais?
“Não. Uma série de jornais e revistas aparecendo na minha frente, que nem nos filmes, quando querem dar um salto no tempo. Aquele tanto de capas e manchetes, uma atrás da outra. E veio revista...


...veio edição especial...

...veio jornal.”

“Todas apontavam a mesma coisa: eu ia ser famoso pra cacete, venerado pelas massas, e tudo isso só ia começar com o lançamento de um livro escrito por Dadinho Pinel e Paulo Saci. Era perfeito, eu nem ia precisar queimar neurônio, era só encontrar esses dois desconhecidos e forçá-los a escrever pra mim. Eu não tenho grana pra pagar ghost-writer, né. Pra mim ficou claro na hora, essa máscara e a motosserra eram a única forma de convencer vocês a fazer o trabalho de graça.”
As peças pareciam se encaixar. Paulo e Dadinho matutaram: trabalho escravo por trabalho escravo, talvez fosse melhor um que os tornasse mundialmente conhecidos do que ficar fazendo cartão de “feliz reencarnação” para os monges da Rede Tibetana. Uma viagenzinha pra Ucrânia também não faria mal algum.

- A gente topa, seu Jiraya – disseram, selando o negócio.
A volta para o rancho foi bem animada. Dadinho dirigia com tranqüilidade apesar do breu na estrada de terra, conversando com Paulo sobre os dias vindouros.

- Aí a gente zás, fica famoso e vende muito livro e zás...
- E conhece um monte de ucranianas e zás, e ganha o Nobel, e zás, e... DADINHO, OLHA O TATU!!
Foi tudo muito rápido. Um tatu-canastra, gordo e carapaçudo, atravessou a estradinha na frente do carro. Dadinho girou o volante no ato, intentando desviar do dasipodídeo, mas a manobra não saiu como planejada e o carro capotou uma, duas, três vezes pelo matagal em volta da estrada.

Paulo e Dadinho tiveram escoriações leves e acordariam depois de apenas umas semaninhas de coma, que forneceriam uma desculpa mais do que conveniente para matar trabalho.
Tião, asfixiado pela cordinha da máscara de Jiraya, morreu na hora.

Frase do próximo capítulo:
"Quero apanhar na rua."
Bruno Gagliasso
O capítulo também deverá conter uma piada matemática, um ideograma chinês e o sentido da vida.

(Lembrando que todos os capítulos desta última temporada deverão conter a palavra “último”. “Última”, “últimos” e “últimas” também valem. “Ultimamente”, “ultimato” e “ultimogênito” estão proibidas.)


3 comentários:

Isabella Brandão disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Isabella Brandão disse...

Comentário 1: Estou lendo o Tião a 01:05 da madrugada e soltei uma mega gargalhada alta com o nome do padre: "Vagino Clitório Vulvênio Xoxó" hahahaahah

Isabella Brandão disse...

Comentário 2: Não serei qual desses seria mais impossivel: justin bieber roqueiro, tiririca escritor ou dado dolabela o romantico do ano