quarta-feira, 23 de junho de 2010

I - A última viagem




Frase do capítulo:
“Só sei que aquele negócio com fio se chama mouse. E em Portugal, se chama camundongo.” - Mário Prata, Os Anjos de Badaró, página 63.


Foi um dia longo e cansativo.

Como sempre, muito trabalho. Os monges da Rede Tibetana de Escolas não davam folga: todo dia pediam novos anúncios, novas campanhas, novos cartões comemorativos do aniversário do Dalai Lama, novos jornaisinhos (ou seria jornaizinhos? nunca sei), sem falar nas zilhares de alterações malucas em todo e qualquer detalhe das peças já criadas, desde o molar da modelo que parece meio cariado, até o botão “enviar” do formulário de reclamação do site, que não soa muito criativo.

Além disso, a rede começava a esticar suas perninhas para trocentos campos de atuação diferentes. Os projetos da semana incluíam as campanhas de lançamento da Rede Tibetana de Bancos de Sangue, a Rede Tibetana de Comida Congelada e a Rede Tibetana de Lojinhas de 1,99. A monjaiada não perdia tempo.

Fitando a tela em branco do Word, Paulo Saci se perguntava o que estava fazendo ali. Não que escrever o texto de parabéns às bodas de adamantium da tia-avó do monge-diretor-de-marketing não fosse a realização de seu emprego dos sonhos; ele só queria terminar logo porque estava afoito para a viagem que faria dali a algumas horas. Seria a primeira vez em quase um ano que ele voltaria ao Rancho do ZÁZ, local de aconchego e bem-estar (e colado no maior atrativo turístico do mundo!), com a mesma turma de faculdade com quem vivera incríveis aventuras e altas confusões nos quatro anos anteriores.

Trabalhando ao seu lado, Dadinho E. Pinel enfrentava uma batalha hercúlea contra o Corel Draw, numa tentativa desesperada de finalizar a diagramação do folheto de ofertas da Rede Tibetana de Relax (“Dafne Rebeca, quase loira, boquinha nervosa, apenas dezenove e noventa por hora!”). Infelizmente, ele não podia soltar toda a sua raiva e chamar o famigerado software de fiádapulta, boco-moco ou laprinja: não porque a agência seguisse agora os preceitos do Dalai e proibisse seus funcionários de proferir termos chulos aos quatro ventos, mas porque todos os redatores e diretores de arte daquela sala estavam sob o alerta “vaca amarela”, e quem falasse primeiro, mandava a regra, deveria ingerir os dejetos fecais da bovina cor-de-gema.

De repente, ouviu-se um espirro. A poeira acumulada em meses de desarrumação na mesa de trabalho de Paulo Saci provocou uma esternutação em seu destacado nariz e um alto “Atchiiiiim!” retumbou na sala.

- Atchim é palavra! Ele falou! Ele falou! Vai comer a bosta dela!! - gritou, no ato, Felizardo, o diretor de criação em exercício. Não bastasse a verbalização de seus pensamentos, ele levantou-se da cadeira e começou a bater os pés no chão enquanto gritava “Falou!! Falou!!”, num chilique esperneante que matou seus companheiros de trabalho de vergonha.

Nisso, atraído pelo barulho, entrou o dono da agência.

- Porra, Felizardo. Chamar de “chefitcho” eu ainda tolero, mas um faniquito desses não dá pra agüentar. Rua!

Debulhando-se em lágrimas, o agora ex-funcionário guardou seus pertences e deixou o recinto para nunca mais voltar.

- Quem quer ser diretor de criação levanta a mão! - anunciou o dono da agência, em seguida.

“Cri, cri, cri...”, ouviram-se os grilos, mesmo que estivessem no meio da cidade grande. Era óbvio que ninguém queria o amaldiçoado cargo: além de triplicar a quantidade de trabalho, teriam que aprofundar-se nas mais minuciosas filosofias da Rede Tibetana e o salário, baseado na tabela do Sindicato de Criancinhas Filipinas Que Costuram Tênis da Nike, continuaria o mesmo.

- Ariadne! - gritou o dono da agência, diante do silêncio de seus subordinados.
- Chamou, chefe? - respondeu a moça, ainda com o paninho e o vidro de cloro nas mãos.
- Ariadne, larga esses produtos de limpeza e me fala um negócio. Você sabe o que é um computador?
- Eu? Só sei que aquele negócio com fio se chama mouse. E em Portugal, se chama camundongo.
- Perfeito. Você está promovida. Agora é a nova diretora de criação da Jabotí.

Estavam nessa quando a campainha soou. Era Laís Abel, amiga de longa data de Paulo Saci e futura amante secreta de Dadinho E. Pinel. Ela também iria naquela noite ao Rancho do ZÁZ com os dois, mas embora chegasse de mochila e cuia, veio com uma revelação preocupante:

- Minha mãe teve um pressentimento. Ela não quer que eu viaje.
- Ah, Laís. Relaxa. Ela também teve um pressentimento de que você ia ficar rica com o curso de Ecologia, e deu no que deu. - disse Paulo Saci, pra quebrar a tensão. Não funcionou.
- É sério, gente. Ela sempre me dá a maior força pra essas coisas. Qualquer viagem, passeio... Mas hoje ela disse que eu não deveria ir. Que alguma coisa de ruim vai acontecer. Eu não sei o que eu faço.
- Pra falar a verdade, eu também tô com o pé atrás – disse Dadinho. - Tá armando o maior pé d'água, as estradas pra Saúva não são muito seguras, e dirigir nessas condições não é lá o meu forte.
- Vamos enfrentar o medo, galera – disse Paulo Saci, se borrando em segredo. - Se for pra acontecer alguma coisa, que aconteça.

O grupo ficou completo com a chegada da baiana Nívea S., que logo ficou a par das previsões da genitora de Laís Abel e dos receios dos dois futuros ex-publicitários. Dadinho e Paulo Saci fecharam o layout do cartão de ano-novo da Rede Tibetana de Lavagem de Dinheiro, pegaram suas mochilas e foram para o carro de Dadinho.

Ninguém tocou mais no assunto, mas na cabeça dos quatro passava a mesma coisa: “esta é a última vez que piso nessa agência...”, “esta é a última vez que como um hambúrguer de carne de minhoca...”, “esta é a última vez que colo meleca debaixo do banco do carro...”. Aquela viagem aparentemente feliz, repleta de canções e joguinhos e conversas e piadas e risadas e quererecas e corrutelas e bafafás, escondia a certeza quase total de que alguma coisa muito, mas muito terrível estava pra acontecer.

No meio do caminho, a chuva apertou e Dadinho via tanto da estrada e dos carros quanto naquela pista nublada do Enduro do Atari, lembra disso? O papo e as risadas diminuíram até parar. Todos tinham os músculos tensos e o coração na boca.

“Pupupupupu pufffff”, fez o motor do carro.

- Aimeudeus, quê que houve? - disse Laís.
- O motor pifou. Não sei o que foi.
- Porra, Dadinho! Você não trocou o óleo antes da viagem, seu maluco? - estressou-se Saci.
- Dadinho é o caralho, e o carro tava em ordem, porra! Já falei que não sei qual é o problema. Quer ir lá olhar?
- Nesse toró? Prefiro esperar.

Mas não precisaram esperar muito. Nos arbustos espessos que margeavam a rodovia, perceberam um movimento. Primeiro fingiram que não viram e continuaram quietos. Depois, a folhagem começou a balançar de forma tão intensa que não puderam mais ignorar.

- O que que é aquil--
- AAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHH!!! - veio a voz do meio dos arbustos, crescendo em direção ao carro dos quatro. E finalmente puderam ver a quem ela pertencia.

Era um homem grande, com uma motosserra ligada nas mãos e uma reluzente máscara de Jiraya.

Frase do próximo capítulo:
“Ora, eu sou o dinossauro que acompanha o tênis!”
(Anúncio na contracapa da revista Cebolinha 39, maio de 2010)

(O capítulo também deve conter as palavras: nenúfar, esbugalhastes e zuzara.)

(Além disso, todos os capítulos desta última temporada deverão conter a palavra “último”. “Última”, “últimos” e “últimas” também valem. “Ultimamente”, “ultimato” e “ultimogênito” estão proibidas.)

Escrito por Lucas Paio que, por restrições do governo comunista, não pode postar.

2 comentários:

Isabella Brandão disse...

Tenho que dizer que CHOREI de rir com esse capítulo. Laís Abel foi ótimo! hahahah

Unknown disse...

Quero aparecer tb haha.