quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

XIV - Chuleite


Frase do capítulo:
"Chato é ter chato."
Isabella Brandão


A tribo dos Tak Tak ficou extasiada com o nascimento da pequena Kuara Ayala. Ela nascia no dia da lua cheia bonina, um evento que acontecia a cada 35 cantos da cigarra e que anunciava a nova era de fartura para a tribo. Ku, como a mãe preferia que a chamassem, foi levada pelo cara grande até um altar na beira do barranco, onde uma multidão esperava ansiosa. Colocada sobre uma cama de capim dourado, o chefão, que como todos da tribo só conversava em versos, disse:

A menina da cara amassada
Hoje veio trazer a bonança
Parida de uma vulva peluda
Essa gordinha criança
Nos alegra com a lua bonina
E enche o povo de esperança

A supimposa profecia
Finalmente se completa
As cigarras que agora cantam
Minha música predileta
Anunciam a nova era
Que tanto falava o profeta

Mas nem tudo são flores
Há sempre o sacrifício
Vão-se as mãos e os dedos
Em troca de outro solstício
Me entristece cortar os cotocos
Mas são os ossos do ofício

Tião, que havia reencarnado nessa linda menininha, tinha plena consciência do que acontecia ao seu redor. Por algum motivo – que eu sei qual é, mas a J.K. Rowling não deixou revelar – ele não perdeu a memória da vida passada e, desde a fecundação, vem tendo a percepção da vida nova. Passou maus bocados dentro útero, sofrendo as dores das mitoses constantes, escapando de um enforcamento por uma circular de cordão e sendo aterrorizado com o pênis descomunal do pai fazendo visitas diárias até a trigésima nona semana de gestação. No ócio solitário da bolsa amniótica, bolava planos de fuga que nunca deram certo. Tentou escapar pelo ânus uma vez, mas só conseguiu constranger a mãe num almoço da tribo. 

Sem saber desse detalhe no regimento da profecia, a mãe que não tinha lido as letrinhas miúdas no pé do livro sagrado, interveio para tentar salvar os membros da pequena Ku.

Amado líder iluminado
Pare agora essa titica
A menina não tem culpa
Daqui uns anos como fica?
Quando chegar na puberdade
Vai lhe faltar a siririca

Reconsidere a profecia
Reveja a interpretação
Existe sempre uma brecha
Em toda legislação
Vai ser a única maneta
No meio de um povo são

O líder supremo, sem sentir qualquer compaixão e nem tremer a voz, colocou a mãe de Ku no seu devido lugar de mortal sem conexões com as divindades superiores.

A senhora agora se cale
Sua filha tem uma sina
O sacrifício é de todos
Não só da pobre menina
Vamos ter limpá-la
Depois que ela usar a latrina

Nós todos dessa tribo
Valorizamos a tradição
Pagamos as nossas dívidas
Não importa a ocasião
Vamos cortar os cotocos
A senhora querendo ou não

Tião, aprisionado no corpo da pequena Ku, estava apavorado nessa altura da poesia. Uma reencarnação era muito pouco pra esquecer o trauma de ter uma mão amputada por um gordo na última vida. Agora, renascido todo inteiro, mal abria os olhos e já teria que passar por isso novamente. Ele chorava desesperado e se debatia em vão. Cada choro virava uma mamadeira de leite de leoa goela abaixo; cada esperniada era uma massagem para aliviar os gases e a noite ia caindo sem esperança. Na manhã seguinte, Tião foi acordado logo cedo com o barulho de chocalhos de cascavel. Apavorado, abriu só um olho para espiar a cara da morte sem ter que encará-la de frente assim tão cedo. Para seu alívio, ou pânico maior, viu o líder dos Tak Tak segurando um pedaço de pau com vários chocalhos de cobra amarrados e caminhando em sua direção. Ku/Tião, pensou por um segundo em se fazer de morta e, quem sabe, ser enterrada viva, mas inteira. A morte era melhor que aquele destino maneta. Sem conseguir uma parada cardíaca auto induzida com a força do pensamento, foi sacolejada pelo guru supremo.

Acorde enviada do céu
Acorde para o seu destino
O sol bonina já nasceu
Nasceu também o Deus menino
Se Cristã nossa tribo fosse
Seria esse um verso natalino

A mãe de Ku se aproximou distraída, testando a temperatura do leite no dorso da mão direita. Quando ergueu os olhos e viu a pequena sendo levada pela porta da frente, deixou cair a mamadeira e seguiu o pajé desesperada.

Pare agora, amado mestre
Longe de mim persuadí-lo
Ela não é a escolhida
Te imploro, não faça aquilo
O livro sagrado não diz nada
Sobre um terceiro mamilo

O suprassumo da representação divina na Terra, que antes andava apressado, diminuiu o passo até parar. Virou-se para trás com cara de espanto e perguntou:

Que porreéssa, minha senhora?
Explique esse disparate
Ontem ela era normal
Agora ta sobrando parte?
Me mostre logo esse mamilo
Antes que eu mesmo te mate

Tião, que antes entendia tudo, nessa hora não entendeu nada. Olhou pra mãe com a mesma cara de intrigado que o pajé olhou. Mas impossibilitado de se defender ou mesmo controlar seus esfíncteres, só restava relaxar e ver no que aquilo tudo ia dar.

Eu não disse nada antes
Só hoje senti o chulé
Minha filha veio marcada
Com um mamilo no pé
Ela é filha do demônio
Me perdoe, nobre Pajé

Chorando e soluçando, a mãe continuou

Eu quis acabar com tudo
Enterrá-la no meio do mato
Mas pensei que tem coisa pior
E não cheguei às vias de fato
Isso agora não tem importância
Muito mais chato é ter chato

O pajé não comprou muito a desculpa da mãe de Ku de que uma coceirinha genital é pior que ter um filho enviado do capeta. Olhando fixamente para o mamilo extranumerário no pé da criança, viu a promessa de prosperidade para a tribo ir pro beleléu. Refletiu sobre os ensinamentos milenares que havia estudado e, rapidamente, concluiu o que seria certo fazer. Apertou o passo novamente e #partiu em direção ao altar de sacrifício. A mãe de Ku o seguiu apreensiva. Ao chegar no alto do morro, o chefão dos índios colocou Tião sobre a mesa e gritou para o povo que esperava ansiosamente pela oferenda.

Meu povo, trago as novas
Nosso anjo é do capeta
Não podemos ofertá-la
No céu há uma nuvem preta
Os Deuses logo veriam
No pé ela tem uma teta

A multidão ficou em polvorosa enquanto o pajé erguia a criança e mostrava o mamilo no pé. As pessoas se olhavam canastronamente como figurantes mal dirigidos. Ninguém sabia o que seria feito com aquela aberração. Foi quando o pajé prosseguiu.

Já sei como resolver
Podem confiar em mim
Conheço um homem de longe
Tudo da certo no fim
Vou enviar um recado
Mandar buscar um espadachim



Frase do próximo capítulo: "Aí virou o samba do crioulo loiro"

O capítulo também deverá conter uma barata mentirosa e sete saias de filó.

(Lembrando que todos os capítulos desta última temporada deverão conter a palavra "último". "Última", "últimos","últimas" também valem.  "Ultimamente", "ultimato" e "ultimogênito" estão proibidas.)

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