domingo, 26 de junho de 2016

XVI - Êspensaquéofim



Frase do capítulo:
"Vender o carro não foi difícil"
A Saga de Tião, Capítulo 0.


Aquele encontro foi mágico. - Somente no sentido lúdico da palavra - Tião, Natasha e o Espadachim se entreolharam como grandes amigos que se reencontram na festa de 20 anos de formados da quinta turma do curso de contabilidade das Faculdades Integradas Almeida Souto.
- Natasha! Você não mudou nada – disse Tião enquanto urinava na fralda de taboa.
    - O que aconteceu com você? Pensei ter te perdido naquele acidente terrível – lamentou Natasha.

Antes que pudessem render o papo e trocar carícias, o líder dos Tak Tak se aproximou para apressar o ilustre convidado espadaúdo.

Amado convidado
Pessoa tão aguardada
Você deve ser breve
Nos livrar dessa cilada
Os Deuses não aceitam
Oferenda expirada

Fluente em rima e com andar desequilibrando pra esquerda, o Espadachim aproximou-se mais do pajé e falou-lhe ao pé do ouvido:

Agradeço o convite
Ó, nobre santidade
Minha vida tava chata
Aguardando novidade
Farei o meu melhor
Pra essa comunidade

O santíssimo aborígene ordenou que levassem Ku para o altar na beira do precipício. Rapidamente a multidão se aglomerou ao pé do morro aguardando o pronunciamento rimado no sacerdote. O dia estava fresco, o céu de um azul chato, com nuvens que não pareciam com nada e o vento assoviando desafinado.

A mãe da pequena ultimamente era só pranto e lamento. Chorava sobre o leite derramado as lágrimas que não tinha mais, mas conformada com o destino da filha, acompanhou o cortejo até o altar. Não dá pra tetudo na vida, pensou se consolando. Natasha, sem entender nada do que acontecia, ruminava um bezoar enquanto seguia com o resto. Tião, que diferente da mãe não estava nada conformado, pedia desesperadamente ao espadachim que a poupasse por conta daquela mama inocente no seu pezinho recém nascido.

- Psiu, amigo, chega aí. Vem cá, cara. Olha bem pra esse peitinho no meu pé. Você não vai querer acabar comigo por conta dessa belezura, vai? Tanta teta murcha aí precisando de uma aparada e você vai ter coragem de acabar logo com a minha? Me libera aí.

Tião clamava, mas o Espadachim não olhava pro lado. Parecia não se importar e estava determinado a concluir a missão para a qual foi contratado. Terminada a caminhada ao palco do sacrifício, a tribo calou-se para ouvir o pajé.

Amigos Tak Tak
Apresento-lhes a salvação
Nosso herói veio de longe
Saudemos nosso irmão
Rápido como um ninja
Preciso como cirurgião

Ninguém da tribo sabia o que era um ninja e muito menos um cirurgião, mas aplaudiram e ovacionaram o líder.

Colocando a Ku sobre a mesa e o cu sobre o trono o pajé fez sinal para que o Espadachim se aproximasse. Cheio de dedos, e polegares opositores que permitiam que ele segurasse a espada, o habilidoso enviado fez as honras. Segurou a pequena pelos pés a ergueu para que todos da tribo pudessem ver. Fez-se, novamente, o silêncio.

Povo estranho, encardido
Comecem a celebrar
O sangue será derramado
O Sol voltará a brilhar
O preço é só esta criança
Que precisamos matar

Iniciarei os procedimentos
Nesta tarde profética
É um momento delicado
Feremos de forma bem ética
Por favor, um pó compacto
Tudo em nome da estética

Abaixem as cabeças
Vocês não perdem por esperar
Serei preciso e certeiro
Cabeças irão rolar
E não to falando de Ku
Que aqui não mais estará

A tribo, encardida e muito obediente, permaneceu cabisbaixa esperando a nova ordem do Espadachim. Algumas pessoas cochichavam, de olhos fechados, que podiam sentir a brisa da Nova Era. Outro dizia que adorava aquele cheiro de sangue. Demorou um tempo até que o primeiro rebelde, inquieto com um desfecho que não vinha, levantasse a cabeça para espiar a cena toda. Ergueu um olho entreaberto em direção ao altar e gritou apavorado:

Fomos todos enganados
Ku já se vai galopante
Acabou a esperança
Tudo no tempo de um instante
Num segundo o paraíso
No outro um fim humilhante

Ku, carregada pelo Espadachim no lombo de Natasha, sumia no horizonte. A camela galopava emocionada por resgatar seu grande amor. O Espadachim, pensando um pouco mais lentamente que outrora, calculava a distância que ainda faltava para o ponto de ônibus mais próximo. Saber que a tribo não dispunha de meios de transporte para alcançá-los dava uma certa tranquilidade, mas o vacilo é inimigo da perfeição. Chegaram ao ponto de ônibus (espacial) – eles estão numa ilha, ou vocês acharam que iam fugir de circular? -.
Já dentro do Discovery II, sentados e tranquilos, o Espadachim finalmente pôde sentir-se confuso. Lembranças aleatórias vinham em sua memória e alguma coisa não se encaixava logicamente. Perguntou:

- Ku, nessas horas de confusão e problemas, o que você gosta de comer?

Natasha abanou o rabo e tremeu o cupim sem entender o motivo da pergunta.

- Chouriço e mucilon. – Repondeu Tião, sem titubear 
- Sabia! – exaltou-se o Espadachim, tirando a máscara e revelando sua identidade.
       - Siamês?!

Tião rolou sobre seu próprio eixo na cadeira grande do ônibus e sentou-se sobre a fralda cheia. Passados tantos anos da primeira temporada e tantas reencarnações, não se lembrava com detalhes da fisionomia dos siameses, mas aquela pergunta deu o click.

- Cadê seu irmão da direita?
- Nos separamos. Pouco depois que você passou pela nossa cantina, uma japonesa, muito da científica, foi jantar lá também. Ela fez umas perguntas sobre você, tomou um chá e foi embora. Voltou dias depois se oferecendo pra nos separar. No início recusei, mas a bipolaridade falou mais alto e nos separamos no mesmo mês. Hoje em dia ele trabalha como câmera de segurança de um supermercado em Brovary.
- Deve ter sido difícil decidir quem ficaria com o corpo.
- Nada. Como era eu que controlava os esfincteres, dei o ultimato.

Parênteses espacial: apesar de pouco difundido pela mídia, por motivos óbvios e golpistas da direita burguesa coxinha, os dromedários não suportam muito tempo em gravidade zero. Enquanto Tião e o Siamês conversavam, Natasha sofreu uma convulsão e morreu na cadeira ao lado. Deixo aqui condolências à família.

O ônibus ainda estava em gravidade zero e os dois continuaram o papo.

Que coisa, rapaz. Como você foi parar naquela ilha? – perguntou Tião.
- Ah, depois de me separar do meu irmão resolvi seguir a tradição da família e praticar esgrima. Me mudei para a França, onde não precisava tomar banho todos os dias e onde podia comer manteiga sem medo de infarto. Massa folhada é vida, Tião.

Equanto isso, numa padaria imunda do Bairro Carolina, que faz a melhor massa folhada da região metropolitana de Belo Horizonte…

- Vender o carro não foi difícil, o problema está sendo comprar outro com o dinheiro mixuruca dessa sucata.
- Mas eu pensei que você já tinha juntado a grana pro consórcio.
- Tinha, mas fumei ela toda.

Os dois riram muito e morreram atropelados atravessando fora da faixa.

Capitão Mumsfield informou pelo auto falante: Próxima parada, Cairo. – ele obviamente falou em inglês, mas traduzi para você, leitor incapaz. – O Siamês desceu cambaleante após o pouso ríspido. Carregando Tião no colo, tratou de cobrir a cabeça da criança com o pano de saco que a enrolava desde que saíram da tribo. Não queria que a criança lavantasse suspeita e os ventos fortes que sopravam nos arredores de Cairo levantavam uma nuvem de areia. Na alfândega aero espacial, um califa que era parente direto de Tutankamon, mas que havia sido deserdado porque tava de olho no decote dela, perguntou:

Algum de vocês está desembarcando com sementes, comida não processada, meias sujas, materia escura ou lixo espacial?
Não, senhor.
Pode passar.

Tião e o Siamês dobraram a direita e cascaram no capinado. Os dois não tinham um plano nem pra daqui 40 minutos que dirá para o resto de suas vidas. Tião já havia perdido todos os amores, amigos e dignidades pelo caminho. O Siamês já tinha se desfeito da cantina, de sua companhia quase inseparável e de um disco arranhado do Roberto Carlos. Tudo o que tinham era um ao outro e um Trident de hortelã. Procuraram um hotel num mapa afixado na parede da saída do metro.






Bem vindos ao Catacumba Palace Hotel, o senhor tem reserva?
Não, eu estou de passagem pela cidade e preciso de um quarto só por hoje.
Vou ver o que posso fazer, senhor. Estamos recebendo a comitiva de Lady Meneg’hell e todos os quartos estão ocupa… espere, parece que tivemos uma desistência. O senhor e seu pacote de pano – a moça fez cara de nojo enquanto falava – ficarão no quarto 665, com vista para o Nilo!

No caminho para o quarto, Tião cantarolava baixinho: queeeem queeer pão, quemquerpão, quemquerpão, que tá quentinho, ta quem…

Que isso, Tião?
Não sei, essa música veio na minha cabeça. Sabe quando você passa uma vergonha grande na terceira série e do nada lembra dela?
Sei bem. Primeiro dia visitando os sogros e a descarga não funciona. Lembro disso todos os dias.

O quarto 665 ficava no térreo, logo acima do quarto 666. Os dois passaram pelo saguão lateral onde havia uma replica em tamanho reduzido da pirâmide de  Quéops, uma esfinge de pedra sabão e uma máquina de vender desodorantes. No caminho cruzaram com uma paquita satânica, um cachorro loiro e uma sapatão chamada Marlene. O quarto não era bem o que esperavam. As cortinas brancas feitas de gaze escondiam janelas igualmente grandes e que não davam para lugar nenhum. Distante dois metros do vidro, um muro de tijolos do fundo da cozinha e um banquinho enferrujado. Seu Nilo acenou para o Siamês assim que viu a silhueta desenhada pela luz do quarto. O trabalho de segurança era solitário e ele não perdia a oportunidade de ser simpático. Com a fralda trocada, Tião e o Siamês esperariam amanhecer para pensar no que fazer.

- 2:59 am -

Tião acordando violentamente com o bigode suado.

Siamês! Acorda! Acorda!
Que foi? Quer mamadeira?
Não, lembrei de uma coisa que vai salvar nossa pele e me fazer voltar ao que eu era antes. Lembra da comitiva que ta aqui no hotel? Então, é de uma senhora muito poderosa e que trabalha pro tinhoso. Temos que descobrir em que quarto ela está e dar um jeito de falar com ela.
Isso é fácil. - disse o Espadachim (agora é conveniente chamá-lo assim, vocês vão ver).

Alguns minutos depois de deixar o quarto, o Espadachim retorna com uns pingos de sangue da roupa.
666. É esse logo acima da gente.
Me põe no colo e corre. Vamos aproveitar que ela deve estar dormindo e os seguranças também.
Não, Tião, tem uma sapatão na porta do quarto. Vamos subir pelo ducto de ar condicionado e entramos sem ninguém nos ver.

Os dois se esgueiraram pela tubulação empoeirada – nos filmes elas estão sempre limpas, mas na vida real não – e conseguiram sair pela grade ao lado do banheiro. Praga, que dormia no sofa, nem deu fé. Andaram sobre o carpete sem fazer barulho e mordiam a lingua para evitar o bater dos queixos. Fazia seis graus no quarto da loiraça beuzebu. Tião, com certa urgência para resolver tudo, pulou logo sobre a cama e, pegando um travesseiro, sufocou Lady Meneg’hell.

Fica bem calada quando eu tirar esse travesseiro. – disse Tião enquanto ela se debatia.
Não quero te machucar e só preciso de uma favorzinho. Coisa que você resolve com um estalar de dedos.
Uhhuhuhhuuhhu. – respondeu a loira.

Tião tomou aquilo como um sim e retirou devagar o contour pillow de seu rosto pessegoso.

     - Quem xão vocêix?
     - A senhora não vai lembrar de mim. Quando nos encontramos a primeira vez eu estava num formato diferente. Mais alto e masculino, digamos.
     
     O Siamês só olhava.
     
     - Maix o que querem de mim? Vocêix xão meux fãinx?
    - Eu era um europeu lindo há uns tempos atrás. Morri por uma besteira e reencarnei nesse corpo melanodérmico e infantil. Preciso que me volte ao normal.

     - Maix ixo é muito complicado, baixinha. Temox regraix muito expeciaix para ixo.

Tião estava sem paciência e pulou novamente em cima da loira com o travesseiro. Parecia o boneco assassino bronzeado.

Calma, calma. Poxo resolver ixo pra vocêix. Minha nave ixta pouxada no telhado do hotel. Vamux até lá pelo elevador privativo, maix xem violênxia.

O Siamês apertou o botão do elevador com uma espada que não vem ao caso e os três entraram sorrateiramente. Ficaram de frente para a porta, com exceção de Xuxa, que se olhava no espelho enquanto cobria as rugas com argamassa nude. A viagem vertical não demorou muito e em poucos segundos as portas se abriam na escuridão. Luzes no piso indicavam o caminho e eles sairam em meio ao vento frio da noite Cairo.

Espada, pensa aí no que vai pedir pra ela. Só de reencarnar como eu era já to feliz; se puder ser em Kiev, melhor ainda.
Não tenho muitas ambições, Tião. Acho que queria só reencontrar meu irmão.
- O da esquerda?
- Não, Rodolfo. O ultimogênito. Olha! Vulvas!
Não xão vulvaix. Xão beijinhoux.

Chegando perto da nave a escada principal desceu imediatamente. Lady Meneg’hell entrou primeiro. Tião logo procurou um lugar pra sentar enquando a loira girava uns discos ao contrario para acionar os comandos no painel da nave. A voz robótica do computador de bordo – que era igual a da Ivete Sangalo, mas o motivo eu não revelo - bocejou antes de dar as boas vindas.

Olá, minha rainha. A que maínha deve a honra de uma visita tão cedo? Oxe, já acabaram os compromissos por aqui, foi?
Antix foxe. Precisamux voltar praix profundezax agora meixmo.
Perfeitamente. Sai do chãaaaaooo. – disse o computador enquanto a nave era acelerada.

A viagem às entranhas do obscuro demora exatos sete minutos e foi o tempo do Siamês se encantar com a loirice de Lady Meneg’hell e querer procriar com ela. Tião, flatulento e sialorréico, aguardava ansioso pela infernissagem para sair logo da nave e iniciar uma vida nova depois de tantas vidas passadas. Um sinal luminoso de apertar os cintos indicou o pouso próximo. Barulhos e adrenalina. Todos desceram e acompanharam a loira pelo calçamento que levava ao castelo, onde um jantar estava posto esperando a turma toda. Codornas, pernil de criancinha beliscada (dado investigativo necessário: quando a Xuxa passava batom e beijava o rosto de uma criança no programa, era uma espécie da marcação de gado pro abate. Pode procurar, não tem nenhuma viva) e pavê de sonho de valsa. Com todos acomodados e com guardanapo de linho egípcio no colo, a rainha dos baixinhos bateu o garfo de marfim na taça dando o sinal. Entraram dois seguranças sarados e sem camisa.

- Papaquitox, podem levar a crianxinha para o calabouxo da reencarnaxão. O velho vocêix prendam no meu quarto que agora ele é meu.

Foi uma gritaria só. Tião pulava e gritava de felicidade pela iminente volta ao seu corpo. O Espadachim gritava de entusiasmo por ser prisioneiro do amor de uma mulher tão atraente e capetuda, uma criança deitada numa bandeja de prata também gritava - era o steak tartare - .

Pequim, setembro de 2009

- Tudo bem? Me chamo Lucas, posso me sentar?
- Claro, fique a vontade
  A mesa é bem grande
  Te faço essa caridade
  Nunca te vi por aqui
  Por acaso é novo na cidade?
- Obrigado, achei engraçado você conversar rimando. Qual seu nome?
- Por favor, não me oprima
  Já nasci fazendo verso
  Rima rica é coisa fina
  Deixe me apresentar
  Prazer, meu nome é Tina.
  
  
Fim!?


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